sexta-feira, 13 de março de 2020

A montanha andina

A montanha andina tem passagens desconhecidas, utilizadas antigamente por contrabandistas, tão hostis e difíceis que os guardas rurais já não se preocupam em vigiá-las. Rios e precipícios encarregam-se de interceptar o caminhante.
Meu companheiro Jorge Bellet era o chefe da expedição. À nossa escolta de cinco homens, bons ginetes e guias, juntou-se meu velho amigo Víctor Bianchi, que tinha chegado a essas paragens como agrimensor numas questões de terra. Não me reconheceu. Eu estava de barba crescida após ano e meio de vida escondida. Apenas soube do meu projeto de atravessar a selva, ofereceu-nos seus inestimáveis serviços de explorador experiente. Já tinha subido antes ao Aconcágua numa expedição trágica, da qual foi quase que o único sobrevivente.
Caminhávamos em fila, amparados pela solenidade do alvorecer. Fazia muitos anos, desde minha infância, que não montava a cavalo, mas aqui íamos a passo. A selva andina austral está povoada de grandes árvores apartadas uma da outra. São gigantescos lariços e maitenos, depois tepas e coníferas. Os munes assombram por sua espessura. Parei para medir um. Era do diâmetro de um cavalo. No alto não se vê o céu. No chão as folhas têm caído durante séculos, formando uma camada de húmus onde se afundam os cascos dos animais. Numa marcha silenciosa atravessávamos aquela grande catedral da natureza selvagem.
Como nosso caminho era oculto e vedado, aceitávamos os indícios mais fracos de orientação. Não havia pegadas, não existiam picadas e com meus quatro companheiros a cavalo buscávamos em ondulante cavalgada, eliminando os obstáculos de poderosas árvores, impossíveis rios, penhascos imensos, neves desoladas, adivinhando o rumo de minha própria liberdade. Os que me acompanhavam conheciam o roteiro, a possibilidade entre as grandes folhagens mas, para se sentirem mais seguros, marcavam com um golpe de facão aqui e acolá os troncos das grandes árvores, deixando sinais que os guiariam no regresso, quando me deixassem só com meu destino.
Cada um avançava com dificuldade naquela solidão sem margens, naquele silêncio verde e branco: as árvores, as grandes trepadeiras, o húmus depositado por centenas de anos, os troncos semiderrubados que subitamente eram uma barreira a mais em nossa marcha. Tudo era a um tempo uma natureza deslumbrante e secreta e simultaneamente uma crescente ameaça de frio, neve e perseguição. Tudo se misturava: a solidão, o perigo, o silêncio e a urgência de minha missão.
Às vezes seguíamos uma pegada muito tênue, deixada talvez por contrabandistas ou delinquentes comuns fugitivos, e ignorávamos se muitos deles tinham perecido, surpreendidos de repente pelas mãos glaciais do inverno, pelas tormentas tremendas de neve que quando se desencadeiam nos Andes envolvem o viajante, afundando-o sob sete palmos de brancura.
De cada lado da pegada vi, naquela desolação selvagem, algo como uma construção feita pela mão do homem: pedaços de ramos empilhados que haviam suportado muitos invernos, oferenda vegetal de centenas de viajantes, altos túmulos de madeira em memória aos mortos, para lembrar os que não puderam continuar e ficaram ali para sempre debaixo da neve. Também meus companheiros cortaram com seus facões as ramas que nos roçavam as cabeças e que desciam sobre nós do alto das coníferas imensas, dos carvalhos cuja última folhagem palpitava antes das tempestades do inverno. E também fui deixando em cada túmulo uma lembrança, uma casca de madeira, um ramo cortado do bosque para enfeitar as tumbas de um ou outro dos viajantes desconhecidos.
Tínhamos de atravessar um rio. Essas pequenas vertentes nascidas nos cumes dos Andes precipitam-se, descarregam sua força vertiginosa e irresistível, transformam-se em cascatas, rompem terras e rochas com a energia e o ímpeto que trouxeram das alturas espantosas. Mas esta vez encontramos um remanso, um grande espelho de água, um vau. Os cavalos entraram, perderam o pé e nadaram até a outra margem. De repente meu cavalo foi ultrapassado quase totalmente pelas águas, comecei a agitar-me sem apoio, meus pés se agitavam à deriva enquanto o animal lutava por manter a cabeça fora d'água. Assim atravessamos. Quando chegamos à outra margem, os guias, os camponeses que me acompanhavam, perguntaram com um certo sorriso:
Teve muito medo?
Muito. Pensei que tinha chegado minha última hora – disse.
Íamos atrás do senhor com o laço na mão – responderam.
Aí mesmo – acrescentou um deles – meu pai caiu e a correnteza o arrastou. Não ia acontecer o mesmo com o senhor.
Prosseguimos até entrar em um túnel natural que talvez foi aberto nas rochas imponentes por um caudaloso rio perdido ou por um abalo do planeta que dispôs nas alturas aquela obra, aquele canal rupestre de pedra escavada, de granito, no qual penetramos. Com poucos passos os cavalos resvalavam, tratavam de firmar-se nos desníveis da pedra, suas patas se dobravam, estalavam chispas nas ferraduras. Mais de uma vez vi-me arrojado do cavalo e estendido sobre as rochas. Minha montaria sangrava nas narinas e patas, porém prosseguimos obstinados o vasto, o esplêndido, o difícil caminho.
Algo nos esperava no meio daquela selva inóspita. Subitamente, como uma visão singular, chegamos a uma pequena e aprazível pradaria encolhida no regaço das montanhas: água clara, prado verde, flores silvestres, rumor de rios e o céu azul no alto, luz generosa liberta de qualquer folhagem.
Ali nos detivemos como dentro de um círculo mágico, como hóspedes de um recinto sagrado – e maior condição de sagrada teve ainda a cerimônia da qual participei. Os vaqueiros desceram de suas montarias. No centro do lugar estava colocada, como num rito, uma caveira de boi. Meus companheiros aproximaram-se silenciosamente, um por um, para deixar umas moedas e alguns alimentos nos buracos do osso. Uni-me a eles na oferenda destinada a toscos Ulisses extraviados, a fugitivos de todas as espécies que encontrariam pão e auxílio nas órbitas do touro morto.
Mas não parou aí a cerimônia inesquecível. Meus rústicos amigos despojaram-se de seus chapéus e iniciaram uma estranha dança, saltando num pé só ao redor da caveira abandonada, repassando a marca circular deixada por tantas danças de outros que por ali cruzaram antes. Compreendi então de uma maneira imprecisa, ao lado de meus companheiros impenetráveis, que existia uma comunicação de um desconhecido a outro, que havia uma solidariedade, um apelo e uma resposta mesmo nos mais longínquos e afastados ermos deste mundo.
Mais adiante, já a ponto de atravessar as fronteiras que me afastariam por muitos anos de minha pátria, chegamos de noite às últimas gargantas das montanhas. Vimos subitamente uma luz acesa que era indício certo de habitação humana e, ao nos aproximar, encontramos algumas construções desconjuntadas, galpões desmantelados parecendo vazios. Entramos num deles e vimos, à luz de um fogo, grandes troncos acesos no centro da habitação, corpos de árvores gigantescas que ali ardiam de dia e de noite e que deixavam escapar pelas frestas do teto uma fumaça que vagava no meio das trevas como um profundo véu azul. Vimos montões de queijos acumulados por quem os coalhou naquelas alturas. Perto do fogo, agrupados como sacos, jaziam alguns homens. Distinguimos no silêncio as cordas de uma guitarra e as palavras de uma canção que, nascendo das brasas e da escuridão, trazia-nos a primeira voz humana com que havíamos topado no caminho. Era uma canção de amor e de saudade, um lamento de amor e de nostalgia dirigido à primavera distante, às cidades de onde vínhamos, à infinita extensão da vida. Eles ignoravam quem éramos, eles nada sabiam do fugitivo, eles não conheciam minha poesia nem meu nome. Ou conheciam e nos conheciam? O fato é que junto daquele fogo cantamos e comemos e depois caminhamos dentro da escuridão até alguns aposentos primordiais. Através deles passava uma corrente termal, água vulcânica onde submergimos, calor que se desprendia das cordilheiras e que nos acolheu em seu meio.
Chapinhamos alegres, lavando-nos, limpando-nos do peso da longa cavalgada. Sentimo-nos refrescados, renascidos, batizados quando ao amanhecer empreendemos os últimos quilômetros de jornada que me separariam daquele eclipse de minha pátria. Afastamo-nos cantando sobre nossas montarias, cheios de um ar novo, de um alento que nos impelia para o grande caminho do mundo que estava me esperando. Quando quisemos dar (recordo-o vivamente) aos montanheses algumas moedas de recompensa pelas canções, pelos alimentos, pelas águas termais, pelo teto e pelos leitos, quer dizer, pelo inesperado amparo que nos saiu ao encontro, eles rechaçaram nosso oferecimento sem um gesto. Tinham nos servido e nada mais. E nesse “nada mais”, nesse silencioso “nada mais” havia muitas coisas subentendidas: talvez o reconhecimento, talvez os mesmos sonhos.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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