A
montanha andina tem passagens desconhecidas, utilizadas antigamente
por contrabandistas, tão hostis e difíceis que os guardas rurais já
não se preocupam em vigiá-las. Rios e precipícios encarregam-se de
interceptar o caminhante.
Meu
companheiro Jorge Bellet era o chefe da expedição. À nossa escolta
de cinco homens, bons ginetes e guias, juntou-se meu velho amigo
Víctor Bianchi, que tinha chegado a essas paragens como agrimensor
numas questões de terra. Não me reconheceu. Eu estava de barba
crescida após ano e meio de vida escondida. Apenas soube do meu
projeto de atravessar a selva, ofereceu-nos seus inestimáveis
serviços de explorador experiente. Já tinha subido antes ao
Aconcágua numa expedição trágica, da qual foi quase que o único
sobrevivente.
Caminhávamos
em fila, amparados pela solenidade do alvorecer. Fazia muitos anos,
desde minha infância, que não montava a cavalo, mas aqui íamos a
passo. A selva andina austral está povoada de grandes árvores
apartadas uma da outra. São gigantescos lariços e maitenos, depois
tepas e coníferas. Os munes assombram por sua espessura. Parei para
medir um. Era do diâmetro de um cavalo. No alto não se vê o céu.
No chão as folhas têm caído durante séculos, formando uma camada
de húmus onde se afundam os cascos dos animais. Numa marcha
silenciosa atravessávamos aquela grande catedral da natureza
selvagem.
Como
nosso caminho era oculto e vedado, aceitávamos os indícios mais
fracos de orientação. Não havia pegadas, não existiam picadas e
com meus quatro companheiros a cavalo buscávamos em ondulante
cavalgada, eliminando os obstáculos de poderosas árvores,
impossíveis rios, penhascos imensos, neves desoladas, adivinhando o
rumo de minha própria liberdade. Os que me acompanhavam conheciam o
roteiro, a possibilidade entre as grandes folhagens mas, para se
sentirem mais seguros, marcavam com um golpe de facão aqui e acolá
os troncos das grandes árvores, deixando sinais que os guiariam no
regresso, quando me deixassem só com meu destino.
Cada
um avançava com dificuldade naquela solidão sem margens, naquele
silêncio verde e branco: as árvores, as grandes trepadeiras, o
húmus depositado por centenas de anos, os troncos semiderrubados que
subitamente eram uma barreira a mais em nossa marcha. Tudo era a um
tempo uma natureza deslumbrante e secreta e simultaneamente uma
crescente ameaça de frio, neve e perseguição. Tudo se misturava: a
solidão, o perigo, o silêncio e a urgência de minha missão.
Às
vezes seguíamos uma pegada muito tênue, deixada talvez por
contrabandistas ou delinquentes comuns fugitivos, e ignorávamos se
muitos deles tinham perecido, surpreendidos de repente pelas mãos
glaciais do inverno, pelas tormentas tremendas de neve que quando se
desencadeiam nos Andes envolvem o viajante, afundando-o sob sete
palmos de brancura.
De
cada lado da pegada vi, naquela desolação selvagem, algo como uma
construção feita pela mão do homem: pedaços de ramos empilhados
que haviam suportado muitos invernos, oferenda vegetal de centenas de
viajantes, altos túmulos de madeira em memória aos mortos, para
lembrar os que não puderam continuar e ficaram ali para sempre
debaixo da neve. Também meus companheiros cortaram com seus facões
as ramas que nos roçavam as cabeças e que desciam sobre nós do
alto das coníferas imensas, dos carvalhos cuja última folhagem
palpitava antes das tempestades do inverno. E também fui deixando em
cada túmulo uma lembrança, uma casca de madeira, um ramo cortado do
bosque para enfeitar as tumbas de um ou outro dos viajantes
desconhecidos.
Tínhamos
de atravessar um rio. Essas pequenas vertentes nascidas nos cumes dos
Andes precipitam-se, descarregam sua força vertiginosa e
irresistível, transformam-se em cascatas, rompem terras e rochas com
a energia e o ímpeto que trouxeram das alturas espantosas. Mas esta
vez encontramos um remanso, um grande espelho de água, um vau. Os
cavalos entraram, perderam o pé e nadaram até a outra margem. De
repente meu cavalo foi ultrapassado quase totalmente pelas águas,
comecei a agitar-me sem apoio, meus pés se agitavam à deriva
enquanto o animal lutava por manter a cabeça fora d'água. Assim
atravessamos. Quando chegamos à outra margem, os guias, os
camponeses que me acompanhavam, perguntaram com um certo sorriso:
– Teve
muito medo?
– Muito.
Pensei que tinha chegado minha última hora – disse.
– Íamos
atrás do senhor com o laço na mão – responderam.
– Aí
mesmo – acrescentou um deles – meu pai caiu e a correnteza o
arrastou. Não ia acontecer o mesmo com o senhor.
Prosseguimos
até entrar em um túnel natural que talvez foi aberto nas rochas
imponentes por um caudaloso rio perdido ou por um abalo do planeta
que dispôs nas alturas aquela obra, aquele canal rupestre de pedra
escavada, de granito, no qual penetramos. Com poucos passos os
cavalos resvalavam, tratavam de firmar-se nos desníveis da pedra,
suas patas se dobravam, estalavam chispas nas ferraduras. Mais de uma
vez vi-me arrojado do cavalo e estendido sobre as rochas. Minha
montaria sangrava nas narinas e patas, porém prosseguimos obstinados
o vasto, o esplêndido, o difícil caminho.
Algo
nos esperava no meio daquela selva inóspita. Subitamente, como uma
visão singular, chegamos a uma pequena e aprazível pradaria
encolhida no regaço das montanhas: água clara, prado verde, flores
silvestres, rumor de rios e o céu azul no alto, luz generosa liberta
de qualquer folhagem.
Ali
nos detivemos como dentro de um círculo mágico, como hóspedes de
um recinto sagrado – e maior condição de sagrada teve ainda a
cerimônia da qual participei. Os vaqueiros desceram de suas
montarias. No centro do lugar estava colocada, como num rito, uma
caveira de boi. Meus companheiros aproximaram-se silenciosamente, um
por um, para deixar umas moedas e alguns alimentos nos buracos do
osso. Uni-me a eles na oferenda destinada a toscos Ulisses
extraviados, a fugitivos de todas as espécies que encontrariam pão
e auxílio nas órbitas do touro morto.
Mas
não parou aí a cerimônia inesquecível. Meus rústicos amigos
despojaram-se de seus chapéus e iniciaram uma estranha dança,
saltando num pé só ao redor da caveira abandonada, repassando a
marca circular deixada por tantas danças de outros que por ali
cruzaram antes. Compreendi então de uma maneira imprecisa, ao lado
de meus companheiros impenetráveis, que existia uma comunicação de
um desconhecido a outro, que havia uma solidariedade, um apelo e uma
resposta mesmo nos mais longínquos e afastados ermos deste mundo.
Mais
adiante, já a ponto de atravessar as fronteiras que me afastariam
por muitos anos de minha pátria, chegamos de noite às últimas
gargantas das montanhas. Vimos subitamente uma luz acesa que era
indício certo de habitação humana e, ao nos aproximar, encontramos
algumas construções desconjuntadas, galpões desmantelados
parecendo vazios. Entramos num deles e vimos, à luz de um fogo,
grandes troncos acesos no centro da habitação, corpos de árvores
gigantescas que ali ardiam de dia e de noite e que deixavam escapar
pelas frestas do teto uma fumaça que vagava no meio das trevas como
um profundo véu azul. Vimos montões de queijos acumulados por quem
os coalhou naquelas alturas. Perto do fogo, agrupados como sacos,
jaziam alguns homens. Distinguimos no silêncio as cordas de uma
guitarra e as palavras de uma canção que, nascendo das brasas e da
escuridão, trazia-nos a primeira voz humana com que havíamos topado
no caminho. Era uma canção de amor e de saudade, um lamento de amor
e de nostalgia dirigido à primavera distante, às cidades de onde
vínhamos, à infinita extensão da vida. Eles ignoravam quem éramos,
eles nada sabiam do fugitivo, eles não conheciam minha poesia nem
meu nome. Ou conheciam e nos conheciam? O fato é que junto daquele
fogo cantamos e comemos e depois caminhamos dentro da escuridão até
alguns aposentos primordiais. Através deles passava uma corrente
termal, água vulcânica onde submergimos, calor que se desprendia
das cordilheiras e que nos acolheu em seu meio.
Chapinhamos
alegres, lavando-nos, limpando-nos do peso da longa cavalgada.
Sentimo-nos refrescados, renascidos, batizados quando ao amanhecer
empreendemos os últimos quilômetros de jornada que me separariam
daquele eclipse de minha pátria. Afastamo-nos cantando sobre nossas
montarias, cheios de um ar novo, de um alento que nos impelia para o
grande caminho do mundo que estava me esperando. Quando quisemos dar
(recordo-o vivamente) aos montanheses algumas moedas de recompensa
pelas canções, pelos alimentos, pelas águas termais, pelo teto e
pelos leitos, quer dizer, pelo inesperado amparo que nos saiu ao
encontro, eles rechaçaram nosso oferecimento sem um gesto. Tinham
nos servido e nada mais. E nesse “nada mais”, nesse silencioso
“nada mais” havia muitas coisas subentendidas: talvez o
reconhecimento, talvez os mesmos sonhos.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
Nenhum comentário:
Postar um comentário