sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Visita à terra natal

Depois disto... diante disto... não sei como principie...
Aos primeiros sorrisos longínquos de minha terra na curva azul de sua enseada, enquanto o vapor me aproximava rapidamente destas doces plagas, onde minha mãe me embalou o primeiro e meus filhos me velarão, talvez, o último sono, vendo pendurar-se do céu e estremecer para mim o ninho onde cantou Castro Alves, verde ninho murmuroso de eterna poesia debruçado entre as ondas e os astros, parecia-me que a saudade, amado fantasma evocado pelo coração, me estendia os braços de toda a parte, no longo amplexo do horizonte. Minha vida inteira, o remoto passado fugitivo recompunha-se-me nalguns instantes, de uma infinita suavidade triste, como a das grandes afeições tenazes, que lutam contra a volubilidade dos sucessos, e procuram fixar-se à beira da corrente irresistível da vida, abraçando-se aos ramos imortais do ideal. Nesse crescer, porém, de recordações, onde o meu espírito flutuava, anelante, de vaga em vaga, de pensamento em pensamento, de ressurreição em ressurreição, mais vivas, mais insistentes, mais obsessivas entre todas se me debuxavam na memória as impressões da minha última visita a estes lares. Vai por cinco anos. Era em 1888. Corriam os últimos dias de abril. Poucos me eram dados, para respirar estes ares, a cujo oxigênio se formou a minha paixão pela liberdade. Eu vinha só com a minha fé, a única força que a natureza não me recusou, a companheira fiel das minhas provações, o viático de meu caminho acidentado. A atmosfera do império e da escravidão oprimia-nos, abafadiça, de todos os lados. Os partidos monárquicos brigavam, enfezados, na sua rixa de lagartos, na raiva preguiçosa de velhos estélios coriáceos, à luz de uma publicidade indiferente, ou hostil, como os raios do sol que acariciam o torrão próspero, mas flagelam a estepe escalvada, no silêncio, no marasmo, na solidão moral da pátria, calcinada por uma esterilidade maldita.
Quisestes então ouvir-me, amigos meus, bons conterrâneos, meus irmãos... irmãos, porque fomos ninados todos no mesmo berço destas encostas arredondadas e meigas como regaço de fada benfazeja, todos amamentados aos seios da mesma mãe, a alma Bahia, mãe da inteligência, da generosidade e do entusiasmo…
Rui Barbosa, in Antologia

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