Cyro
dos Anjos viajou para Belo Horizonte, perdão, para Cristália, onde
foi receber homenagem da Academia Montanhesa de Letras pela
publicação de seu romance. Viagem de automóvel. Ao volante, seu
filho Martim, que, embora muito jovem, tem a prudência requerida por
essas excursões de longa meta.
Em
companhia de Cyro viajavam ainda sua senhora, uma senhora amiga do
casal e o júnior Francisco de Assis, que aconteceu em 1952 e é
afilhado do cronista, com grande orgulho para este. E tudo ia bem,
como devia ir, até que à zero hora do dia seguinte o carro parou em
Tamanduá-Mirim, num cruzamento de estradas, diante de uma fila
inerte de caminhões.
Martim
especulou e disseram-lhe que não se podia passar. O Departamento de
Estradas de Rodagem operava na rodovia para Cristália, e os homens
haviam deixado terra amontoada no leito da estrada, com um imenso
trator entupitivo. Só pela manhã, quando a turma voltasse.
Couraçados
de resignação, os viajantes rumaram para o único hotel da cidade,
onde não havia quartos disponíveis. Teriam de passar a noite ao
relento, sob o frio de Montanha, esse frio medular propriamente dito,
de que rezam as corografias.
Aí
Cyro indagou do gerente se não havia um responsável pelo serviço
na estrada. Havia o engenheiro, e morava precisamente no hotel.
— Então
faça o favor de acordá-lo — pediu o romancista.
— A
essa hora da noite? Não é possível.
— O
senhor não vai querer que duas senhoras e um menino durmam sentados
no carro, em plena rua.
O
engenheiro foi acordado. Era atencioso e simpático, lamentou o
ocorrido, mas que podia fazer?
O
escritor, mestre em psicologia, pintou-lhe, menos o quadro de
desconforto vigente, que um painel futuro, de aborrecimentos em
potencial.
— Doutor,
já imaginou o que significa o bloqueio, durante uma noite inteira,
da única via de acesso a Cristália, cidade encravada numa região
que não produz sequer um tomate? Esses caminhões de gêneros, que
deixam de chegar à hora certa, afetando o abastecimento…
— Tem
razão, foi um descuido do fiscal da obra, deixar a estrada impedida.
Mas onde vou eu encontrar o tratorista, a essa hora da noite?
— Tenha
paciência, doutor, eu ajudo a procurar o homem.
— Que
espiga!
— Também
acho. E já pensou se por acaso algum repórter vem a saber disso,
embora eu seja discreto e não vá comentar o caso com ninguém?
— É,
de fato…
— E
depois, doutor, aqui entre nós: a senhora que vai conosco é esposa
do Secretário de Segurança Pública de Montanha. Claro que ele não
vai tomar atitude, mas de qualquer modo, que vexame!
O
engenheiro botou o capotão sobre o pijama e lá se foram, Cyro,
Martim e ele, a demandar o perdido tratorista na névoa da
Mantiqueira. Acharam-no. O engenheiro ainda sugeriu que se fizesse um
servicinho menor, só para deixar passar o Chevrolet 54, mas Cyro foi
irredutível: ou tudo ou nada. Cristália precisava comer, os
caminhões de Cristália deviam mesmo ter preferência, essa
preferência aliás já estabelecida na Central do Brasil, onde os
trens de minério atrasam os de passageiros.
Em
meia hora a estrada foi desembaraçada, ligaram-se motores, faróis
se acenderam e a frota alegre de caminhões saiu buzinando num
pagode. O último motorista da fila ainda se virou para Cyro e
agradeceu-lhe:
— Moço,
não calcula o bem que me fez. Eu tinha tomado Pervitin para varar a
noite guiando, e agora ia passar toda essa madrugada de olho aberto,
ouvindo grilo!
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
Nenhum comentário:
Postar um comentário