segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Trabalhos de escritório

Minha fiel secretária é das que tomam sua função ao pé da letra, e já se sabe que isso significa passar para o outro lado, invadir territórios, enfiar os cinco dedos no copo de leite para tirar um pobre cabelinho.
Minha fiel secretária se ocupa ou pretenderia ocupar-se de tudo em meu escritório. Passamos o dia travando uma cordial batalha de jurisdições, um intercâmbio sorridente de minas e contraminas, de saídas e retiradas, de prisões e resgates. Mas ela tem tempo para tudo, não só procura apropriar-se do escritório como cumpre escrupulosamente suas funções. Por exemplo, as palavras, não há dia em que não as encere, as escove, as coloque na prateleira exata, as prepare e enfeite para suas obrigações cotidianas. Se me vem à boca um adjetivo prescindível porque todos eles nascem fora da órbita de minha secretária — e de certa maneira de mim mesmo —, já está ela de lápis na mão agarrando-o e o matando sem lhe dar tempo de colocar-se ao restante da frase e sobreviver por descuido ou por hábito. Se eu deixasse, se neste mesmo instante eu deixasse, ela jogaria estas folhas na cesta, enfurecida. Está tão decidida a que eu viva uma vida condenada, que qualquer movimento imprevisto a leva a erguer-se, toda orelhas, toda rabo em pé, tremendo como um arame ao vento. Tenho que disfarçar, e a pretexto de que estou redigindo um relatório, encher algumas folhinhas de papel cor-de-rosa ou verde com as palavras que eu gosto, com as suas brincadeiras, os seus saltos e as suas brigas raivosas. Enquanto isso, minha fiel secretária arruma o escritório, aparentemente distraída mas pronta para dar o bote. Na metade de um verso que nascia tão contente, pobrezinho, eu a ouço começar seu horrível guincho de censura, e então meu lápis volta a galope às palavras proibidas, risca-as correndo, ordena a desordem, fixa, limpa e dá esplendor — e o que sobra é provavelmente muito bom, mas essa tristeza, esse gosto de traição na língua, essa cara de chefe com sua secretária.
Julio Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas

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