sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Sinais mortíferos

A primeira referência em grego, portanto provavelmente a primeira na história da literatura ocidental, à prática de escrever está no livro 6 da Ilíada, e não é boa. Alguém é encarregado de levar “sinais mortíferos”, a inscrição numa lousa, a outro alguém. No tempo da Ilíada, as histórias eram transmitidas oralmente, não havia um texto atribuível com certeza a Homero ou sequer certeza de que existia um Homero. Para o público da época, a escrita era algo remoto e misterioso, e as marcas cunhadas em pedra ou argila, como descritas na Ilíada, um código esotérico e certamente sinistro. As marcas aprisionavam e imobilizavam as palavras, levavam-nas para outro domínio e lhes davam outro poder, diferente do poder comum, e do sortilégio compartilhado, da palavra dita. Por isso a escrita estreou na literatura caracterizada como mortífera.
Séculos depois de Homero, outro poeta, W. B. Yeats, diria que fazia seus versos de “bocados de ar”, e Anthony Burgess, que usou a frase de Yeats — A Mouthful of Air — como título num livro seu sobre linguagem, escreveu que a primeira realidade da literatura é essa mesmo, um bocado de ar transformado pelos órgãos vocais, enquanto a escrita e a impressão são suas realidades secundárias. Mas é a palavra escrita que dá permanência à linguagem, mesmo ao preço de roubá-la da sua vulgaridade democrática, e quase toda a nossa experiência literária é feita dessa segunda realidade. Ao contrário dos gregos antigos, só “ouvimos” os poetas dentro da nossa cabeça, e preferimos assim. Lembro-me da decepção que foi ouvir uma gravação do T. S. Eliot declamando seus próprios poemas. Era uma leitura tão diferente da minha, silenciosa, que concluí que ele não entendia o que tinha escrito.
Pode-se dizer que, assim como ninguém tem prazer em ler uma partitura musical sem som, é na partitura — nos sinais escritos — de um poema, ao contrário da sua oralização, que está a musicalidade. Por melhor que seja o declamador, ele nunca se igualará ao leitor ideal de um texto favorito, você mesmo para você mesmo. Com o tempo, os sinais mortíferos perderam seu estigma e se transformaram na única maneira de compartilhar do sortilégio, inclusive do Homero.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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