No
documento emitido pelo Juizado de Menores lê-se o seguinte:
“Requisito-vos” (ao agente da Estação D. Pedro II, no Rio de
Janeiro) “duas passagens de ida e volta em 1ª classe dessa estação
até a Estação Presidente Franklin Roosevelt, em São Paulo, para o
Dr. Lourenço Laurentis, Curador de Menores do Distrito Federal, e um
menor, que viajam a serviço deste Juízo”.
Muito
atencioso, o agente-ajudante que me atende na Central. Não me faz
esperar. Mas, depois de carimbar a requisição, objeta-me que só
amanhã poderá dar as passagens, pois o regulamento ferroviário
exige antecedência de três dias, não de quatro. Adiantei-me, pois.
Evito discutir, para que não surjam obstáculos futuros.
A
ideia de fazer essa viagem na companhia unicamente de meu filho,
tendo eu me comprometido a não desviá-lo de suas leituras nem
durante o percurso nem durante o dia inteiro (25 de dezembro) que
passaremos em São Paulo, corresponde satisfatoriamente à nossa
concepção (minha e dele) do anti-Natal. Atravessaremos a véspera
natalina dentro do trem, sem desejar mal nem bem a quem quer que
seja, ele lendo, eu nos meus devaneios. Dia 26 estaremos de volta.
Não daremos nem receberemos presentes. O único presente tolerado é
essa viagem de graça, que, a bem dizer, não é um presente, é um
direito que me dá o cargo de Curador de menores. Doutor Lourenço e
o filósofo Lourencinho estarão na deles, numa boa.
Verifico
que, se fosse de noturno, com leito de luxo, no “Santa Cruz”, em
cabine individual de dois passageiros, a viagem de ida e volta
custaria ao Estado o triplo do preço desse trajeto feito em poltrona
comum. Sairíamos do Rio às 22:30 do dia 24 e chegaríamos a São
Paulo às 9 da manhã de 25. Magnífico, sem dúvida. Mas repugna à
minha consciência abusar da requisição, proporcionando-nos esse
luxo nababesco que ficaria documentado para sempre. Basta a fraude de
dizer que eu e o Lourencinho vamos “a serviço do Juízo. Tentarei,
em todo caso, combinar ida em noturno e volta em diurno, numa última
homenagem ao meu escrúpulo. O abuso já não será tanto, nem
deixarei de proporcionar a meu filho uma viagem repousada. Se tiver
de ir e vir de diurno — o que seria a hipótese mais econômica —,
a consciência ficará mais leve, mas não sei como se comportariam o
fígado dele e os meus rins. Enfim, veremos.
Precipitado
no meu otimismo, faço, depois do jantar, uma descrição para a
família toda reunida de como é o trem encantado em que viajaremos
os dois. Vagões de aço inoxidável. As poltronas forradas de
camurça. Giratórias. Ninguém em pé, todos acomodados, de
fisionomias risonhas. A composição move-se deslizando, sem nenhuma
trepidação, nenhum ruído, não entra pó, o ar que circula é como
o do cinema Metro, trem de cinema, primeiro você pensa que é por
causa do dia chuvoso, mas deixe chegar uma estação, abrir-se a
porta e verá que é como se se abrisse uma fornalha. É a
temperatura que faz lá fora. Dentro do carro, no entanto, a mesma
inalterável e suavíssima ambiência! Moças e rapazes falam-se aos
beijos. Quando não se beijam, cantam. Um sonho!
Diante
da minha expansão, Lourencinho tem o comentário desalentador de que
só vai a São Paulo para me acompanhar, e que não sabe, afinal, se
isso de anti-Natal funcionará mesmo. Se nem o anti-Natal o seduz,
meu Deus, que se pode esperar desse rapaz? Deve ser a perspectiva da
viagem fatigante. Mas não é só isso, não. Quando lhe falo no que
faremos para conhecer a cidade, onde não piso desde 1920 — há
mais de 30 anos, portanto —, adverte logo: — Desista disso de
querer mostrar parques e avenidas e monumentos e pessoas! Iremos cada
qual para seu lado.
Vou
buscar as passagens na estação. Outro subagente. Atencioso, como o
de ontem. Entretanto, fez-me esperar 25 minutos para verificar se a
assinatura era mesmo do juiz de menores, um desaforo. Conclui
dizendo, amabilíssimo, que só amanhã, 22, poderá me dar os
bilhetes, pois o regulamento fala em “três dias antes da viagem”:
sendo esta no dia 24, os três dias contam-se 22, 23 e 24. Considera
24 como sendo ao mesmo tempo o dia da viagem e a véspera! Evito
discutir etc.
Risadas
do homenzinho quando lhe falo em “noturno” e “Santa Cruz A
requisição menciona apenas “passagem de 1ª”. Sem especificar
“noturno só se pode subentender “diurno”. A fim de não
dificultar a interpretação favorável em São Paulo, para a volta,
escreve “tarifa noturna”, o que permitirá que eu cogite de
noturno de lá para cá. Mas, noturno em “trem de madeira”, sem
leito de qualquer espécie. Nem, sequer, poltrona. A poltrona, mesmo
para o diurno, tem de ser paga à parte. São 60 para a ida e outros
60 para a volta. Quer dizer que a requisição do Juízo de Menores
só me deu o direito de andar dentro do trem até São Paulo e de São
Paulo aqui. Custará isso ao Estado 568 cruzeiros redondos. Acho
infinita graça, agora, na minha ingenuidade de falar em “escrúpulo”
de pleitear coisa melhor... O Governo sabe com quem lida. As
bandalheiras não se fazem assim, com recibo. Elas se aninham noutras
dobras.
Volto
no dia seguinte, o guichê das passagens está se abrindo, sou o
primeiro passageiro atendido. Entretanto, não posso ter os assentos
que peço, na sombra. “Nós aqui desconhecemos os lugares que são
no sol e os que ficam na sombra. As ordens são para destacá-los
automaticamente, sem intervenção de quem quer que seja.”
Conformo-me. Ele lê a requisição. O outro funcionário, ao
datá-la, pôs certo 21.12.1951; mas, quando se referiu ao dia da
viagem, escreveu, sabe-se lá por que, 24.12.1952, equívoco
palpável, evidente. Mas S. Exa. o bilheteiro do guichê nº 1 acha
que deve ser retificado. Atendo-o, ainda nisto. No guichê nº 5 já
está outro funcionário, diverso do “amabilíssimo” com quem
falei ontem. Objeta-me que a retificação não é da sua
competência, e que o funcionário que poderia fazê-la só começará
a trabalhar às 4 da tarde. Não posso tolerar semelhante absurdo.
Volto então ao agente substituto. Ouve-me em silêncio. Manda chamar
o bilheteiro. Fala-lhe. E se volta para mim, austeramente: — O
funcionário tem razão. Ele não pode retificar um erro que não
cometeu. Mas o senhor, também, não vai pagar pelo que se fez sem
sua culpa. Atenda-o, portanto, Sr. Freitas. Se o algarismo puder ser
modificado, modifique-o. Se não puder, extraia outro passe.
E
dá-me as costas. O algarismo não pôde ser modificado. Depois de
ajustar pachorrentamente os carbonos e de “experimentar” noutro
papel, de rascunho, Freitas pega solenemente o lápis, calca-o,
descobre o carbono e diz: — Não deu certo. — Espero, pois, 15
minutos para que ele extraia novo passe.
Seria
justo que minha odisseia terminasse aí. Mas não terminou. Vou para
o bilheteiro do guichê nº 1. Examina os novos passes, pede-me a
carteira funcional e me diz secamente: 60 cruzeiros pelas duas
poltronas. Dou-lhe o dinheiro, mas pergunto:
— Que
é que essas poltronas têm de mais?
Ele
não demora na resposta:
— Nada.
— Então
por que se paga à parte? Se eu não pagasse, iria em pé?
O
homem ajusta os óculos ao nariz, fita-me serenamente, reflete no que
vai dizer. Responde-me:
— Iria.
Quer
dizer: um funcionário, viajando a serviço do Estado, tendo sua
passagem requisitada pelo Juízo de Menores, em nome do Ministro da
Justiça, não tem direito sequer a viajar sentado nas 11 horas do
percurso. Mas ainda há mais. Pergunto, delicadamente, ao ditador que
tenho pela frente, se as poltronas 37 e 38 do carro “B” ficam, ou
não, na sombra. Com uma irritação mal disfarçada em calma
“superior”, responde-me: — Meu caro senhor, quer um conselho?
Peça a Deus que sejam na sombra, porque só Ele pode decidir.
Ali
a justiça divina já está feita de antemão. Qualquer dos lugares é
igual nos benefícios e nas desvantagens. Em 11 horas de viagem, de
7:25 às 18:25, quem tiver sol pela manhã não o terá mais à
tarde, e quem, pela manhã, gozar da sombra, escaldará com o sol de
depois do meio-dia.
Rimo-nos,
ambos, para descarregar os nervos, evidentemente tensos, tensíssimos.
Desejo-lhe Feliz Natal com toda a sinceridade. Posso respirar, enfim.
As providências que tinha de tomar para garantir nosso anti-Natal,
meu e do meu filho, já estão tomadas.
Carlos
Sussekind, in Os cem melhores contos brasileiros do século
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