Minha
mãe adoeceu. Engordou muito na barriga e nos pés, mas as outras
partes do corpo ficaram magras. No pescoço o gogó crescia, as
bossas da testa avultavam, o vestido subia na frente, cada vez mais
se levantava, exibindo as pernas finas como cambitos.
Foi
passar meses na fazenda do pai. Antes de curar-se, esteve uns dias de
cama, alimentado-se com pirão escaldado e capões que vinham do
galinheiro construído a um canto do jardim. E bebia cachimbo,
mistura de aguardente e mel de abelha dos cortiços pendurados no
beirai do alpendre. Em obediência à medicina bruta do sertão,
adicionavam cebola à beberagem, o que a tornava repugnante. Afinal
minha mãe largou o choco. Estava pálida, sem ventre, a saia
arrastando, fraca e bamba. E amamentava uma criança chorona.
Tinham-me
levado ao campo, na garupa do cavalo de meu tio Serapião. Os dentes
de um cisca-dor me haviam furado o pé na véspera. O chouto do
animal me sacudia, o rabicho e o arção da sela me incomodavam, a
ferida se inflamava, doía. E Serapião me assustava narrando
histórias de almas, de lugares mal-assombrados.
— Sarapo,
não conte isso. Cale a boca.
Serapião
insistira, eu saltara nos seixos miúdos do caminho, magoara as
estrepadas. Na fazenda, mal podia andar, capengava dos currais ao
chiqueiro das cabras, aos juazeiros do fim do pátio, firmando-me no
calcanhar.
Meus
tios pequenos se distanciavam, corriam na catinga, abandonavam-me ao
capricho de meu avô, que me jungiu à prosa do Barão de Macaúbas e
ao catecismo, trazidos na carona de Sarapo. Mas o velho dava às
letras nomes desconhecidos, lia de forma esquisita — e eu lamentava
a ausência de D. Maria, a excelente mestra que me deixava errar,
murmurava conselhos com doçura, como se pedisse desculpa. Meu avô
era exigente. Detinha-se numa desgraçada sílaba, forçava-me a
repeti-la, e isto me perturbava. As longas barbas brancas varriam-me
a cara assustada; os olhos azuis, repletos de ameaças, feriam-me; a
voz engrossava, rolava, entrava-me nos ouvidos como um trovão
fanhoso e encatarroado. Os meus conhecimentos debandavam; as linhas
misturavam-se, fugiam; no papel e dentro de mim grandes manchas
alargavam-se. Nessa deplorável situação, eu embrulhava
estupidamente a leitura, balbuciava respostas insensatas. O grito
ribombava, enchia-me de pavor, transformava-se pouco a pouco numa
gargalhada imensa que atraía gente e me encabulava. A alegria
ruidosa parecia-me intempestiva; as minhas tolices não tinham graça.
De
repente o medo findava, uma bondade singular me envolvia, áspera,
adstringente, manifesta na fala cavernosa e autoritária, no riso
grosso e incômodo. Bondade espessa, com cheiro de curtume, de
angico.
Perneiras,
gibões, peitorais, enormes chapéus de barbicachos, pendiam de
tornos cravados na taipa negra. Rolos de sola arrumavam-se nos
cantos, cordas flexíveis em sebo. Enfileiravam-se num cavalete selas
de campo de suadouros úmidos e escuros. Sapatões cabeludos em toda
a parte, mantas de peles, correias, cabrestos, chicotes, látegos.
Isso animalizava um pouco as pessoas.
Em
dias de matança trepava-me na porteira do curral, via meu avô
derrubar a machado, sangrar e esfolar uma novilha, aprumar-se no chão
vermelho, as mãos vermelhas. Comparei-o mais tarde aos judeus
antigos, Abraão, Isaac, Esaú, religiosos e carnívoros.
A
religião de meu avô era segura e familiar. Revelava-se diante do
oratório erguido na sala, sobre a mesa coberta de pano vistoso. Na
gaveta desse altar guardavam-se macetes, chifres de veado, sovelas,
cera, pregos, torqueses, pedaços de couro em que se pulverizava fumo
torrado. Em cima, na luz, entre fitas e flores secas, litografias
piedosas, figurinhas santas esculpidas por imaginários rudes. O
velho se ajoelhava na esteira, persignava-se, batia no peito, ouvia a
ladainha que Maria Melo, sacerdotisa e mulher do vaqueiro, cantava
numa espécie de latim. Ali agachado e contrito, perto da negra
Vitória e de Maria Moleca, voluntariamente escravas porque não
tinham em que empregar a liberdade, reduzia-se muito, não se
diferençava quase de Ciríaco, pastor de cabras. Finda a cerimônia,
recuperava a grandeza e o comando:
— Ó
negra!
Maria
Moleca trazia a gamela de água, vinha lavar-lhe os pés, de cócoras,
enxugá-los na toalha encardida. Essa posição era natural. De
cócoras preparava a comida, temperava a panela, atiçava o fogo na
trempe de pedras. De cócoras varria a casa com um molho de
vassourinha cortado no fundo do terreiro, onde o muçambê e o velame
desbotavam. Dormia de cócoras, arrimada à parede, sob as cortinas
de pucumã que desciam do teto.
Se
a gamela tardava, minha avó intervinha ranzinza:
— Vai
lavar os pés de teu senhor, negra.
Dirigia-se
a uma negra indeterminada, pois temia o gênio de Vitória, que
arrastava no serviço o quarto desmantelado, andava cambaleando,
fazia trabalhos duros de homem, zangava-se facilmente e, endireitando
o busto franzino de virgem murcha, uma coragem feroz a sacudi-la,
despia a subserviência hereditária, roncava:
— Cativeiro
já se acabou, dona. Se eu morrer na cozinha de Seu Pedro Ferro, não
me salvo.
Mas
envelhecia, encarquilhava-se na cozinha. Às vezes a coxa se
desarticulava — e a infeliz se torcia gemendo, os bugalhos
doloridos fixos nas crianças, que mangavam das caretas dela. Os amos
se condoíam, levavam para a cama de varas a pequena máquina
desarranjada, tentavam desenferrujá-la e azeitá-la. Os ossos se
juntavam, levantavam-se, iam coxeando consertar as cercas do jardim,
regar os craveiros e a losna, encher no rio o pote, que voltava penso
na rodilha, ameaçando cair, um penacho de folhas verdes no gargalo.
Essa
ruína vacilante e obstinada era um refúgio: defendia-nos dos
perigos caseiros, enrolava-nos na saia de chita, protegia-nos as
orelhas e os cabelos com ternura resmungona, esquisita expressão de
maternidade gora. Estávamos em segurança perto dela.
— Se
eu morrer na cozinha de Seu Pedro Ferro, não me salvo.
Morreu
de supetão, vomitando sangue, debaixo do jirau onde se acumulavam
frigideiras, mochilas de sal, réstias de alho. E com certeza se
salvou, porque endureceu na virgindade e conservou o espírito limpo.
Fez muita falta, embora, já não podendo ser vendida e com uma banda
desconchavada, representasse apenas valor estimativo.
Antes
da abolição alguns pretos haviam abandonado a casa, sido presos
pelo capitão-de-mato, fugido novamente. Meu avô os deixara em paz,
julgando-os malucos e ingratos. Como se arranjariam? Ali estavam
quietos. O serviço exigia pouco esforço, as vaquejadas eram
torneios, o proprietário passava dias no banco do copiar ou
escanchado na rede, fungando tabaco, um lenço no ombro, de
alpercatas e roupa de algodão cru, descaroçado na bolandeira
próxima, tecido no tear doméstico.
A
catinga imensa não tinha dono, o gado pastava livremente nela, de
ribeira a ribeira, aumentava, definhava, bichos de várias fazendas,
reconhecíveis pelas marcas a fogo. De manhã as vacas leiteiras
saíam, voltavam à tarde. O resto dos animais ficava longe, sumido
na vegetação rala, de cardo e favela, que vestia a campina. A
riqueza aparecia no inverno, sem vantagem sensível, desapareceria no
verão, sem inconveniente. Na prosperidade, os hábitos da família
não se modificavam, porque a ausência de saber limitava os desejos;
se a penúria chegava, permaneciam todos calmos, recolhendo-se à
boca da noite, rezando o terço.
Meu
avô possuía bois em abundância, espalhados na capoeira, difíceis
de juntar. Não os levava ao mercado. Esperava que o marchante viesse
buscá-los.
Mandava
então pegar alguns, mirava-os cuidadoso e determinava o peso: tantas
arrobas e tantas libras. Nunca se enganava. Debatido pachorrentamente
o negócio, afastados os compradores, sumia-se nas trevas do quarto,
cochichava números à mulher, ia esconder um maço de notas em arca
de boas dobradiças e boa fechadura. No tempo da monarquia o tesouro
certamente era invisível, constituído por moedas amarelas. Depois,
variável e de papel, foi necessário às vezes desentranhá-lo,
exibi-lo na rua a pessoas idôneas, antes que ele se convertesse num
montão de símbolos desvalorizados.
Nos
meses de seca, os raros habitantes daqueles cafundós mexiam-se
cavando bebedouros na areia, cortando em cestos mandacaru para o
gado, que se finava no carrapato. Dobravam-se as redes. As mãos
sangravam no trabalho rijo, curavam-se as rachaduras dos pés com
sebo derretido na brasa. Nenhuma nuvem toldava os dias compridos;
voos sinistros de arribações riscavam o céu azul; os ramos das
árvores eram gravetos escuros; as folhas tostavam-se; no chão
branco e liso da vazante abriam-se largas fendas.
Inúteis
os cuidados com os bichos moribundos, porque Deus os condenava e
contra as resoluções de Deus ninguém pode. Entretanto meu avô
andava para cima e para baixo, furando-se nos espinhos, ordenando,
fanhoso e lento, medidas vãs. Sossegaria quando os estragos,
completos, abrandassem a cólera divina. Sentar-se-ia de novo na
rede, sem credores, isento de culpa. Inquietações e fadigas eram
penitência que ele mesmo se impunha. O seu tribunal, antigo e
particular, estava longe do de Padre João Inácio. Purgava no
extenso verão pecados ligeiros, o inverno ia encontrá-lo forte e
altivo. A certeza de proceder bem dava-lhe aquela serenidade
perfeita. Cumpria deveres simples, não poderia viver de outra
maneira. Tratar do gado, vê-lo multiplicar-se ou diminuir; gerar
filhos, criá-los, proporcionar-lhes batismo e casamento, não se
afastar muito deles, ampará-los na pobreza e na doença, pôr-lhes a
vela na mão, amortalhá-los, conduzi-los ao cemitério e à
eternidade. Nenhum pensamento estranho o perturbava, nenhum escrito
ia modificar o velho Deus agreste e pastoril.
Os
livros existentes na fazenda eram as minhas cartonagens insossas, que
o patriarca, nessas férias, tentou esclarecer-me no vozeirão
temível findo em riso grosso. Não conseguiu melhorar-me o
intelecto. A repreensão fingida e a alegria rouca me atordoavam.
Desviei-me das carícias rústicas, das barbas alvas que me
arranhavam a cara.
A
ferida do pé cicatrizou. Fui ocultar-me entre as catingueiras que
ensombravam as margens da lagoa vazia. Meninos andavam por ali,
brincando com ossos e seixos. Serapião me ensinava complicações da
História do Brasil, errando bastante. E quando não havia
testemunhas, uma rapariguinha silenciosa me examinava pacientemente o
corpo. Levantava-me a camisa de chita, a roupa que eu usava no campo,
utilizava os dedos e os olhos, num estudo profundo.
Graciliano
Ramos, in Infância
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