sábado, 8 de fevereiro de 2020

González Videla

As amarguras que eu e meus companheiros representávamos dificilmente chegavam ao senado. A confortável sala parlamentar estava como que acolchoada para que não repercutisse nela o vozerio das multidões descontentes. Meus colegas do grupo contrário eram acadêmicos especializados na arte das grandes alocuções patrióticas e sob todo esse tapete de seda falsa que desdobravam sentia-me afogado.
Logo renovou-se a esperança porque um dos candidatos à presidência, González Videla, jurou fazer justiça, e sua eloquência ativa lhe atraiu grande simpatia. Fui nomeado chefe de propaganda de sua campanha e levei a todas as partes do território a boa-nova.
Por esmagadora maioria de votos o povo elegeu-o presidente.
Mas os presidentes em nossa América criolla sofrem muitas vezes uma metamorfose extraordinária. No caso que relato, rapidamente mudou de amigos o novo mandatário, ligou sua família com a “aristocracia” e pouco a pouco converteu-se de demagogo em magnata.
A verdade é que González Videla não entra no rol dos ditadores sul-americanos típicos. Há em Melgarejo, da Bolívia, ou no General Gómez, da Venezuela, jazidas telúricas reconhecíveis. Têm o signo de certa grandeza e parecem movidos por uma força desolada, nem por isso menos implacável. Desde o começo foram eles caudilhos que enfrentaram as batalhas e as balas.
González Videla foi, pelo contrário, um produto da cozinha política, um impenitente frívolo, um fraco que aparentava fortaleza.
Na fauna de nossa América, os grandes ditadores têm sido sáurios gigantescos, sobreviventes de um feudalismo colossal em terras préhistóricas. O judas chileno foi só um aprendiz de tirano e na escala dos sáurios não passaria de um lagarto venenoso. No entanto fez o suficiente para arruinar o Chile. Pelo menos o país retrocedeu em sua história. Os chilenos olhavam-se com vergonha sem entender exatamente como tinha sucedido tudo aquilo.
O homem foi um equilibrista, um acrobata de assembleia. Conseguiu situar-se em um espetacular esquerdismo. Nesta “comédia de mentiras” foi um cauteloso campeão. Isto ninguém discute. Num país em que, em geral, os políticos são ou parecem ser demasiado sérios, a gente agradeceu a chegada da frivolidade mas, quando este dançarino de conga exorbitou, já era demasiado tarde: os presídios estavam cheios de perseguidos políticos e até abriram-se campos de concentração como o de Pisagua. O estado policial instalou-se então como uma novidade nacional. Não havia outro caminho senão aguentar e lutar clandestinamente pelo retorno à decência.
Muitos dos amigos de González Videla, gente que o acompanhou até o fim em suas andanças eleitorais, foram levados a prisões na alta cordilheira ou no deserto por divergirem de sua metamorfose.
A verdade é que a envolvente classe alta, com seu poderio econômico, tinha engolido uma vez mais o governo de nossa nação, como tantas vezes tinha ocorrido. Mas nesta ocasião a digestão foi incômoda e o Chile passou por uma enfermidade que oscilava entre a estupefação e a agonia.
O presidente da república, eleito por nossos votos, converteu-se, sob a proteção norte-americana, num pequeno vampiro vil e encarniçado. Certamente seus remorsos não o deixavam dormir apesar de ter instalado, vizinhas ao palácio do governo, garçonniêres e prostíbulos particulares com tapetes e espelhos para seu deleite. O miserável tinha uma mentalidade insignificante mas retorcida. Na mesma noite que começou sua grande repressão anticomunista convidou dois ou três dirigentes operários para cear. Ao terminar a refeição desceu com eles as escadas do palácio e, enxugando algumas lágrimas, abraçou-os dizendo: “Choro porque ordenei que os prendessem. À saída vocês serão detidos. Não sei se nos tornaremos a ver.”
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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