Durante
muitos anos as empresas salitreiras implantaram verdadeiros domínios,
possessões ou reinos no pampa. Os ingleses, os alemães, toda sorte
de invasores fecharam as áreas de produção e lhes deram o nome de
escritórios. Ali impuseram uma moeda própria, impediram qualquer
reunião, proscreveram os partidos e a imprensa popular. Não se
podia entrar nos recintos sem autorização especial, coisa que muito
poucos conseguiam.
Estive
uma tarde conversando com os operários de um depósito nos
escritórios salitreiros de Maria Elena. O chão da enorme oficina de
trabalhos manuais está sempre enlameado pela água, azeite e ácidos.
Os dirigentes sindicais que me acompanhavam e eu pisávamos sobre um
estrado que nos ilhava do lamaçal.
– Estes
estrados – disseram – custaram-nos 15 greves sucessivas, 8 anos
de petições e 7 mortos.
Estes
últimos deveram-se ao seguinte: numa dessas greves, a polícia da
companhia levou sete dirigentes. Os guardas iam a cavalo enquanto os
operários, amarrados a uma corda, seguiam-nos a pé pelos areais
solitários. Com algumas descargas foram assassinados. Seus corpos
ficaram estendidos sob o sol e o frio do deserto até que foram
encontrados e enterrados por seus companheiros.
Antes
as coisas foram muito piores. Por exemplo, no ano de 1906, em
Iquique, os grevistas desceram à cidade dos escritórios salitreiros
para pleitear suas reivindicações diretamente ao governo. Milhares
de homens extenuados pela travessia juntaram-se para descansar numa
praça defronte a uma escola. Pela manhã iriam ver o governador para
expor-lhe suas pretensões. Mas nunca puderam fazer isso. Ao
amanhecer, as tropas comandadas por um coronel rodearam a praça. Sem
uma palavra começaram a disparar, a matar. Mais de seis mil homens
morreram naquele massacre.
Em
1945 as coisas andavam melhor mas às vezes parecia-me que retornava
o tempo do extermínio. Certa vez me proibiram de falar aos operários
na sede do sindicato. Chamei-os para fora do recinto e, em pleno
deserto, comecei a explicar-lhes a situação, as possíveis saídas
do conflito. Éramos uns duzentos. Subitamente escutei um ruído de
motores e observei que se aproximava, até a quatro ou cinco metros
de minhas palavras, um tanque do exército. Abriu-se a tampa e surgiu
da abertura uma metralhadora que apontava para minha cabeça. Junto à
arma ergueu-se um oficial, muito afetado e muito sério, que se pôs
a me olhar enquanto eu continuava meu discurso. Isso foi tudo.
A
confiança posta nos comunistas por aquela multidão de operários,
muitos deles analfabetos, tinha nascido com Luís Emilio Recabarren,
que foi quem iniciou suas lutas nessa zona desértica. De simples
agitador operário, antigo anarquista, Recabarren converteu-se numa
presença fantasmagórica e colossal. Encheu o país de sindicatos e
federações. Chegou a publicar mais de 15 jornais destinados
exclusivamente à defesa das novas organizações que tinha criado.
Tudo sem um centavo, O dinheiro saía da nova consciência que
assumiam os trabalhadores.
Coube
a mim ver em certos lugares as prensas de Recabarren, que tinham
servido de forma tão heroica e continuavam trabalhando 40 anos
depois. Algumas dessas máquinas foram golpeadas pela polícia até a
destruição, e depois tinham sido cuidadosamente reparadas.
Notavam-se nelas as enormes cicatrizes sob as soldas feitas com
carinho que as fizeram funcionar de novo.
Acostumei-me
naqueles longos passeios a alojar-me nas paupérrimas casas,
casinholas ou cabanas dos homens do deserto. Quase sempre era
recebido por um grupo de pequenas bandeiras à entrada das empresas.
Depois me mostraram o lugar em que ficaria. Por meu aposento
desfilavam, durante todo o dia, mulheres e homens com suas queixas de
trabalho, com seus conflitos mais ou menos íntimos. Às vezes as
queixas assumiam um caráter que talvez um estranho julgaria
engraçado, caprichoso, inclusive grotesco. Por exemplo, a falta de
chá podia ser para eles motivo de uma greve de grandes
consequências. São concebíveis urgências tão londrinas numa
região tão desolada? Mas o certo é que o povo chileno não pode
viver sem tomar chá várias vezes ao dia. Alguns dos operários
descalços, que me perguntavam angustiados a razão da escassez da
exótica mas imprescindível beberagem, argumentavam à guisa de
desculpa:
– É
que, se não o tomamos, nos dá uma terrível dor de cabeça.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
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