Quando
o coágulo de sangue explodiu na cabeça de Jeffrey Curtam, algo nele
foi cortado, como uma mangueira ou um caule. E o seu pensamento
viu-se subitamente decepado do corpo.
Sem
espanto, porque a dor lancinante não teve sequer o tempo de
traduzir-se em grito antes que aquela estranha guilhotina o truncasse
na boca. Passado isso, nada mais havia a não ser a nova dimensão.
— O
Dr. Jewett acha que não há esperança — repetia a enfermeira em
voz baixa, aos eventuais visitantes. — O Sr. Curtam poderá viver
indefinidamente, mas não tornará a ver. Nem se mexerá, nem
pensará. Apenas respirará.
De
fato, Jeffrey respirava. Os pulmões, egoisticamente alheios à
situação do restante do corpo, continuavam exercendo sua tarefa com
a mesma fiel regularidade com que durante tantos anos lhe haviam
fornecido aquele ar indispensável para que se levantasse a cada
manhã, e a cada manhã se barbeasse dando a partida para mais um
dia, que haveria de catapultá-lo da mesa de refeições para a mesa
de trabalho, diante da máquina de escrever e dos contos que produzia
para alimentar o próprio corpo, e com ele os próprios pulmões
encarregados de fornecer aquele ar indispensável para. Jeffrey teria
ficado orgulhoso dos seus pulmões, se apenas se desse conta de que
funcionavam, ou sequer de que os tinha. Mas, apesar do corpo de
Jeffrey continuar possuindo pulmões e outros órgãos em perfeito
estado de funcionamento, seu cérebro os desconhecia e comportava-se
como se deles não necessitasse. Assim como não necessitava da visão
ou da audição. Cortadas as ligações que o haviam ancorado ao
resto do corpo, o cérebro de Jeffrey Curtam não dava mais ordens. E
os médicos, enganados pelo silêncio dessa voz de comando, haviam
decretado sua morte, entretanto, emparedado na caixa craniana cujos
orifícios a ruptura havia vedado com sangue espesso como chumbo, o
cérebro pensava.
Talvez
fosse mais correto dizer que luzia. Pois nada do que havia vivido até
então se assemelhava à luz límpida e pura por ele agora gerada na
óssea escuridão da sua caverna. Jeffrey Curtam havia-se livrado
para sempre da escravidão da coerência. Sua mente, solta, tudo se
permitia, tudo realizava.
Aos
poucos, a camada de pintura branca que cobria a casa de Jeffrey
entrou em entendimento definitivo com o sol e com a chuva, fundindo
sua obediência a ambos numa única tonalidade cinzenta, que somente
sob as calhas permitia-se escurecer. Começou a descascar. Enormes
escamas quebradiças abriam-se feito conchas na velha superfície,
entregando a madeira ao tempo, sem que pérola rolasse.
Crescia
a grama ao redor, manchada aqui e acolá pelas lascas mais frágeis
que em constante outono desprendiam-se das paredes e caíam
volteando, enquanto na imobilidade do corpo de Jeffrey, outro
movimento se processava. Vinda dos pés — ou seria da nuca? — a
paralisia que já lhe havia tomado os membros rastejava por dentro,
buscando alcançar-lhe o coração. Na cidadezinha, todos se referiam
a ele como se já estivesse morto. E todas as manhãs, sua mulher o
barbeava e lavava, mudando-o, ela mesma, da cama para a cadeira e da
cadeira para a cama, falando-lhe como se fala a um cão amigo, embora
sem ter sequer a esperança da resposta ou reconhecimento de que um
cão é capaz. Nada lhe vinha daquele corpo, além do hábito.
Mas
Roxanne falava sem esforço, com a mesma doçura dos primeiros dias,
evitando perguntar-se se o fazia para evitar seu próprio silêncio
ou se para preencher com suas palavras o silêncio que dele parecia
emanar.
Sem
que ela pudesse ouvir, por trás dos cabelos ralos e quase brancos,
por trás da pele apergaminhada, por trás da espessa barreira dos
ossos, um silêncio cheio de sons e palavras tecia sua sinfonia no
cérebro de Jeffrey. Nunca mais ele havia precisado se expressar de
forma audível ou legível. Nunca mais ele havia pensado para outros.
Pensando só para si, seguia o fio sinuoso e inquebrável dos seus
desejos, deixando-se escorrer por ele como em água, sem saltos ou
fraturas. A fabulação, que havia sido sua forma de viver,
tornava-se sua vida. E ali deitado, imóvel, Jeffrey criava e
costurava, uma após a outra, as imagens da longa narrativa.
Um
neurologista — fama convocada para validar o que vários outros já
haviam afirmado — tentou convencer Roxanne de que era inútil
dispensar tamanho cuidado ao enfermo. “Se Jeffrey tivesse
consciência do seu estado”, disse em voz autoritariamente piedosa,
“desejaria morrer. Desejaria libertar-se da prisão do próprio
corpo.
Mas
Jeffrey não desejava morrer. Assim como não desejava livrar-se do
próprio corpo. Esse corpo que, sem movimentos, atrofiava-se aos
poucos sobre a cama, não lhe era prisão. Nem lhe fazia falta.
Antes, havia sido necessário ocupar-se dele, vigiar seus alarmas,
suas dores, seus sintomas, lutar diariamente para atender sua fome
inesgotável, protegê-lo. Antes havia sido imperioso servi-lo, e às
suas exigências. Talvez então lhe fosse mais prisão do que agora,
quando, impedido o contato entre o pensamento e suas carnes, eram
elas que o serviam.
De
alguma forma, poderia-se dizer que Jeffrey não tinha consciência do
seu estado. Mas isso, não porque estivesse impedido de percebê-lo.
E sim porque, na longa travessia na qual seu pensamento estava
empenhado, o fato de não falar ou mover-se parecia tão menor que se
via excluído. Jamais, olhando o vivo cadáver do marido, suspeitaria
Roxanne da intensa movimentação que o habitava. Sem gesto que o
cansasse, Jeffrey não dormia, seu estado era um só. E nesse estado,
de absoluta entrega e absoluta atenção, ele mudava de tempo e de
país, dialogava com os vivos e agia com os mortos, dançava como
nunca havia dançado, cavalgava, respirava no fundo da água, e
voava, voava.
Longas
vezes, enfastiado talvez da tanta agitação, o cérebro de Jeffrey
deixava-se ficar, girando apenas ao redor de um pensamento,
envolvendo-o nos fios prateados das suas ideias, aprumando-lhe as
formas e o sentido, até vê-lo crescer, tão intenso como se a vida
não lhe tivesse sido dada ali, mas apenas explodisse naquele
momento, carga milenar que desde sempre trazia consigo. Erguiam-se
então na pálida atmosfera do quarto as invisíveis torres, e os
sinos badalavam ensurdecedores no cérebro de Jeffrey. Sem que seu
som cortasse o ar pesado do cheiro de remédios.
Os
anos haviam devorado o seguro de Jeffrey. Roxanne fora obrigada a
vender uma parte da terra atrás da casa, depois a abrir mão de uma
faixa de jardim à direita. Uma hipoteca tornara-se inevitável.
E
no entanto, como nos primeiros dias, quando a doença se manifestara
e ainda parecia possível reverter o destino, ela continuava a amar o
marido. Amava, em verdade, aquele homem que havia antes, e que ela
teimava em sobrepor a esta pálida coisa cada dia menor e mais leve,
coisa quase humana que ainda transportava da cama para a cadeira e da
cadeira para a cama, como se carregasse um fardo ou um feto.
— Que
mais posso eu fazer? — perguntava-se puxando de leve as cortinas,
não fosse o sol bater sobre o pobre rosto que, único movimento
perceptível, parecia voltar-se sempre em direção à luz.
Uma
luz quente derramava-se sobre as imagens dos pensamentos de Jeffrey,
naquela tarde em que, pela primeira vez depois de tanto tempo, sentiu
que seu corpo o chamava. Desobstruíam-se os ouvidos, sons alheios
aos seus lhe chegavam como ruído de cachoeira, ou vento, ou
cantoria. As placas ósseas da sua fronte, as maçãs do seu rosto
abriam-se como batentes empurrados por dentro e o sol, com
intensidade nunca antes alcançada, vinha expulsá-lo da caverna.
O
fio do pensamento de Jeffrey lançou-se para aquela luz.
Roxanne,
que cochilava na cadeira ao pé da cama, acordou sobressaltada.
Estendeu a mão para tocar o marido. Não foi preciso. Antes mesmo de
olhá-lo, soube que estava sozinha na casa. Recolheu a mão ao colo,
segurou-a com a outra, e deixou-se ficar. O sol se pôs. O perfume
dos lilases pareceu enlouquecer as cigarras, o coaxar das rãs pairou
sobre o peitoril da janela. Só então Roxanne levantou-se.
Marina
Colasanti, in Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século
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