sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Tempo de sonhar

Os Sapiens governam o mundo porque somente eles são capazes de tecer uma teia intersubjetiva de significados: uma teia de leis, forças, entidades e lugares que existem unicamente em nossa imaginação comum. Essa teia permite apenas aos humanos organizar cruzadas, revoluções socialistas e movimentos de direitos humanos.
Outros animais também podem imaginar diversas coisas. Um gato esperando para emboscar um rato pode não estar vendo o rato, mas pode imaginar muito bem a forma e até o gosto de sua presa. Mas, pelo que sabemos, gatos são capazes de imaginar só coisas que realmente existem, como camundongos. Não são capazes de imaginar o que nunca viram ou farejaram ou degustaram — como um dólar americano, a corporação Google ou a União Europeia. Somente os humanos são capazes de imaginar tais quimeras.
Consequentemente, enquanto os gatos e outros animais estão confinados ao reino objetivo e usam seus sistemas de comunicação apenas para descrever a realidade, os Sapiens usam a língua para criar realidades completamente novas. Durante os últimos 70 mil anos, as realidades intersubjetivas inventadas pelos Sapiens ficaram ainda mais poderosas, de modo que hoje elas dominam o mundo. Será que os chimpanzés, os elefantes, a Floresta Amazônica e as geleiras do Ártico vão sobreviver ao século XXI? Isso depende da vontade e das decisões de entidades intersubjetivas como a União Europeia e o Banco Mundial, as quais só existem em nossas imaginações compartilhadas.
Nenhum outro animal pode nos confrontar, não porque lhes falte uma alma, ou uma mente, mas porque lhes falta a imaginação necessária. Leões são capazes de correr, saltar, agarrar e morder. Mas não são capazes de abrir uma conta num banco ou de processar alguém. E, no século XXI, um banqueiro que saiba mover uma ação judicial é muito mais poderoso do que o mais feroz dos leões na savana.
Assim como distingue os humanos de outros animais, essa capacidade de criar entidades intersubjetivas distingue as ciências humanas das ciências naturais. Historiadores buscam compreender o desenvolvimento de entidades intersubjetivas, como deuses e nações, enquanto biólogos dificilmente reconhecem a existências delas. Alguns acreditam que, se pelo menos conseguirmos quebrar o código genético e mapear cada neurônio no cérebro, deteremos todos os segredos da humanidade. Afinal, se os humanos não têm alma, e se pensamentos, emoções e sensações são apenas algoritmos bioquímicos, por que a biologia não poderia responder por todos os caprichos das sociedades humanas? Desse ponto de vista, as cruzadas foram disputas territoriais formatadas por pressões evolutivas, e os cavaleiros ingleses que foram combater Saladino na Terra Santa não eram tão diferentes assim dos lobos que tentam se apropriar do território de uma alcateia vizinha.
As ciências humanas, em contraste, enfatizam a importância crucial das entidades intersubjetivas, que não podem ser reduzidas a hormônios e neurônios. Pensar em termos históricos significa atribuir poder real aos conteúdos de nossas histórias imaginárias. Historiadores, obviamente, não ignoram fatores objetivos tais como mudanças climáticas e mutações genéticas, mas atribuem importância muito maior às histórias que as pessoas inventam e nas quais acreditam. A Coreia do Norte e a Coreia do Sul são tão diferentes uma da outra não porque as pessoas em Pyongyang tenham genes diferentes daquelas provenientes de Seul, ou porque o Norte seja mais frio e mais montanhoso. É porque o Norte é dominado por ficções muito diferentes.
Talvez, algum dia, descobertas na neurobiologia nos permitam explicar o comunismo e as cruzadas em termos estritamente bioquímicos. Mas estamos muito longe de chegar a esse ponto. Durante o século XXI, é provável que a fronteira entre a história e a biologia fique menos nítida, não porque vamos encontrar explicações biológicas para eventos históricos, e sim porque ficções ideológicas irão reescrever sequências de DNA ; interesses políticos e econômicos redesenharão o clima; e a geografia de montanhas e de rios dará lugar ao ciberespaço. À medida que as ficções humanas são traduzidas em códigos genéticos e eletrônicos, a realidade intersubjetiva vai engolir a realidade objetiva e a biologia vai se fundir com a história. Portanto, no século XXI a ficção se tornará a força mais poderosa na Terra, superando os asteroides e a seleção natural. Daí que, se quisermos entender nosso futuro, decodificar genomas e triturar números, dificilmente será suficiente. Temos de decifrar também as ficções que dão significado ao mundo.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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