quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Simulacros

Somos uma família estranha. Neste país onde as coisas se fazem por obrigação ou fanfarronada, gostamos das ocupações livres, das tarefas sem importância, dos simulacros que de nada adiantam.
Temos um defeito: a falta de originalidade. Quase tudo o que resolvemos fazer foi inspirado — digamos francamente, copiado — de modelos célebres. Se contribuímos com alguma novidade é sempre inevitável: os anacronismos ou as surpresas, os escândalos. Meu tio mais velho diz que nós somos como as cópias de papel carbono, idênticas ao original, a não ser que de outra cor, outro papel, outra finalidade. Minha terceira irmã se compara ao rouxinol mecânico de Andersen; seu romantismo dá náuseas.
Somos muitos e moramos na rua Humboldt.
Fazemos coisas, mas contar é difícil porque falta o mais importante, a ansiedade e a expectativa de estar fazendo coisas, as surpresas tão mais importantes que os resultados, os fracassos em que toda família cai no chão feito um castelo de cartas e durante dias e dias não se escuta mais do que lamentações e gargalhadas. Contar o que fazemos é apenas uma forma de preencher os vazios inevitáveis, porque às vezes estamos pobres ou presos ou doentes, às vezes morre alguém ou (custa dizê-lo) alguém trai, renuncia, ou entra para a Direção do Imposto de Renda. Mas disto não se deve deduzir que vamos mal ou que somos melancólicos. Moramos no bairro de Pacífico e fazemos as coisas toda vez que podemos. Somos muitos a ter ideias e vontade de levá-las à prática.. Por exemplo o patíbulo, até hoje ninguém chegou a acordo sobre a origem da ideia, minha quinta irmã afirma que foi um de meus primos irmãos que são muito filósofos, mas meu tio mais velho sustenta que lhe ocorreu depois de ler um romance de capa e espada. No fundo pouco nos importa, o negócio é fazer as coisas, e por isso eu as conto quase sem vontade, só para não sentir tão de perto a chuva desta tarde vazia, A casa tem um jardim na frente, coisa rara na rua Humboldt. Não é maior que um pátio, mas fica três degraus acima da calçada, o que lhe dá um vistoso aspecto de plataforma, localização ideal para um patíbulo. Como o muro é de alvenaria com grade de ferro, pode-se trabalhar sem que os transeuntes estejam por assim dizer metidos dentro da casa: eles podem se encostar no muro e assim permanecer durante horas, que isso não nos incomoda. "Começaremos na lua cheia", disse meu pai. Durante o dia íamos pegar madeiras e ferros nos depósitos de demolições da avenida Juan B. Justo, mas minhas irmãs ficavam na sala treinando o uivar dos lobos, depois que minha tia mais moça garantiu que os patíbulos atraem os lobos e os incitam a uivar para a lua. O supri¬mento de pregos e ferramentas corria por conta de meus primos; meu tio mais velho desenhava os planos, discutia com minha mãe e meu segundo tio a variedade e a qualidade dos instrumentos de suplício. Lembro-me do fim da discussão: decidiram-se severamente por uma plataforma bastante alta, sobre a qual levantariam uma forca e uma roda com um espaço livre destinado a torturar ou decapitar, conforme o caso. Meu tio mais velho achava isto muito mais pobre e mesquinho do que sua ideia original, mas as dimensões do jardim da frente e o custo dos materiais sempre limitam as ambições da família.
Começamos a construção num domingo à tarde, depois de comer raviólis. Embora nunca nos haja preocupado o que possam pensar os vizinhos, era evidente que alguns curiosos supunham que íamos construir um ou dois quartos para aumentar a casa. O primeiro a surpreender-se foi Dom Cresta, o velhinho de defronte, que veio perguntar para que instalávamos semelhante plataforma. Minhas irmãs se reuniram num canto do jardim e soltaram alguns uivos de lobo. Juntou bastante gente, mas nós continuamos trabalhando até a noite, conseguindo acabar a plataforma e as duas escadinhas (uma para o sacerdote e outra para o condenado, que não devem subir juntos). Na segunda-feira, parte da família foi para seus respectivos empregos e ocupações, já que é preciso morrer de alguma coisa, e o restante começou a levantar a forca, enquanto meu tio mais velho consultava antigos desenhos para a roda. Sua ideia consistia em colocar a roda o mais alto possível sobre uma base ligeiramente irregular, por exemplo, um tronco de álamo bem desbastado. Para lhe ser agradável, meu segundo irmão e meus primos foram buscar um álamo na camioneta; en¬quanto isso, meu tio mais velho e minha mãe encaixavam os raios da roda no cubo e eu preparava um reforço de ferro. Nesses momentos nós nos divertíamos enormemente porque de toda parte se ouviam as pancadas do martelo, minhas irmãs uivavam na sala, os vizinhos se amontoavam na grade trocando impressões, e entre o solferino e o malva do entardecer surgia o perfil da forca e via-se meu tio mais moço, a cavalo, fixando no travessão o gancho e preparando o nó corrediço.
A essa altura dos acontecimentos as pessoas da rua não podiam deixar de perceber o que estávamos fazendo, e um coro de protestos e ameaças nos estimulou agradavelmente a encerrar a jornada com a montagem da roda. Vários atrevidos pretenderam impedir que meu segundo irmão e meus primos pusessem para dentro de casa o magnífico tronco de álamo que traziam na camioneta. Foi feito um esforço tremendo pela família toda que, puxando disciplinadamente o tronco, introduziu-o no jardim juntamente com uma criancinha agarrada às raízes. Meu pai em pessoa devolveu a criança a seus exasperados pais, passando-a cortesmente pela grade, e enquanto a atenção se concentrava nestas alternativas sentimentais, meu tio mais velho, ajudado por meus primos irmãos, calçava a roda no extremo do tronco e começava a levantá-la. A polícia chegou no momento em que a família, reunida na plataforma, comentava favoravelmente o bom aspecto do patíbulo. Só minha terceira irmã ficava junto à porta, e a ela é que coube dialogar pessoalmente com o subcomissário; não foi difícil convencê-lo de que estávamos trabalhando dentro de nossa propriedade, numa obra a que só o uso poderia conferir um caráter inconstitucional, e que os comentários da vizinhança eram produto do ódio e fruto da inveja. A queda da noite nos salvou de perder mais tempo.
Jantamos à luz de um lampião a querosene na plataforma, espionados por uma centena de vizinhos rancorosos; nunca o leitão temperado nos pareceu mais delicioso e mais negra e doce a morcela. Uma brisa do norte balançava suavemente a corda da forca; a roda rangeu uma ou duas vezes, como se já os urubus tivessem pousado nela para comer. Os curiosos começaram a ir embora, resmungando vagas ameaças, ficaram umas vinte ou trinta pessoas coladas à grade, parecendo esperar por alguma coisa. Depois do café apagamos o lampião para dar vez à lua que subia pelas balaustradas no terraço; minhas irmãs uivaram e meus primos e tios percorreram lentamente a plataforma, fazendo com seus passos tremer os alicerces. No silêncio que se seguiu, a lua ficou à altura do nó corrediço, e na roda pareceu estender-se uma nuvem de bordas prateadas. Nós olhávamos contentes que dava gosto, mas os vizinhos murmuravam na grade, como à beira de uma decepção. Acenderam cigarros e foram indo embora, uns de pijama e outros mais devagar. Ficou a rua, um apito de guarda-noturno ao longe, e o ônibus 108 que passava de tanto em tanto tempo; nós já tínhamos ido dormir e sonhávamos com festas, elefantes e vestidos de seda.
Júlio Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas

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