sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Segundo sapato: a ideia de que o sucesso não nasce do trabalho

Ainda hoje despertei com a notícia que refere que um presidente africano vai mandar exorcizar o seu palácio de trezentos quartos porque escuta ruídos “estranhos” durante a noite. O palácio é tão desproporcionado para a riqueza do país que demorou vinte anos a ser terminado. As insônias do presidente poderão nascer não de maus espíritos mas de uma certa má consciência.
O episódio apenas ilustra o modo como, de uma forma dominante, ainda explicamos os fenômenos positivos e negativos. O que explica a desgraça mora junto do que justifica a bem-aventurança. A equipa desportiva ganha, a obra de arte é premiada, a empresa tem lucros, o funcionário foi promovido? Tudo isso se deve a quê? A primeira resposta, meus amigos, todos a conhecemos. O sucesso deve-se à boa sorte. E a palavra “boa sorte” quer dizer duas coisas: a proteção dos antepassados mortos e a proteção dos padrinhos vivos.
Nunca ou quase nunca se vê o êxito como resultado do esforço, do trabalho como um investimento a longo prazo. As causas do que nos acontece (de bom ou de mau) são atribuídas a forças invisíveis que comandam o destino. Para alguns esta visão causal é tida como tão intrinsecamente “africana” que perderíamos “identidade” se dela abdicássemos. Os debates sobre as “autênticas” identidades são sempre escorregadios. Vale a pena debatermos, sim, se não podemos reforçar uma visão mais produtiva e que aponte para uma atitude mais activa e interventiva sobre o curso da História.
Infelizmente olhamo-nos mais como consumidores do que como produtores. A ideia de que África pode produzir arte, ciência e pensamento é estranha mesmo para muitos africanos. Até aqui o continente produziu recursos naturais e força laboral. Produziu futebolistas, dançarinos, artesãos. Tudo isso se aceita, tudo isso reside no domínio daquilo que se entende como “natureza”. Mas já poucos aceitarão que os africanos possam ser produtores de ideias, de ética e de modernidade. Não é preciso que os outros desacreditem. Nós próprios nos encarregamos dessa descrença.
O ditado diz: “O cabrito come onde está amarrado”. Todos conhecemos o lamentável uso deste aforismo e como ele fundamenta a ação de gente que tira partido das situações e dos lugares. Já é triste que nos equiparemos a um cabrito. Mas também é sintomático que, nestes provérbios de conveniência, nunca nos identificamos com os animais produtores, como é, por exemplo, a formiga. Imaginemos que o ditado muda e passa a ser assim: “Cabrito produz onde está amarrado.” Eu aposto que, neste caso, ninguém mais quer ser cabrito.
Mia Couto, in Os sete sapatos sujos

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