segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Pó, além

Eis-me enfermo
apenas de ter corpo,
exausto
de me ausentar da alma.

Eis-me, sem poema,
sem asa e sem palavra.

Eu,
que já fui gente,
agora,
já nem de mim sou parente.

Que cura posso ter
se o amor
foi em mim
a mais doce doença?

Alguns dizem:
basta-me um navio
e todo o mar se torna meu.

Outros dizem:
uma garça
e o céu desaba em minha mão.

A mim,
nem mar nem céu
me devolvem garça ou navio.

Da flor não disputei
nem perfume nem pétala.

O pólen, sim,
atapetou o chão deste poema.
Mia Couto

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