[…]
“Libertar”
era uma palavra imensa, cheia de mistérios e dores. Como fora amena
há dias, quando se destinava a outro papel? Outro, qual? Tudo era
confuso e só se exprimia bem na palavra “liberdade” e nos passos
pesados e firmes, no rosto fechado que adotava. À noite não dormia
até que os galos longínquos começassem a cantar. Não pensava,
propriamente. Sonhava acordada. Imaginava um futuro em que, audaciosa
e fria, conduziria uma multidão de homens e mulheres, cheios de fé
quase a adorá-la. Depois, pelo meio da noite, deslizava para uma
meia inconsciência, onde tudo era bom, a multidão já conduzida,
uma ausência de aulas, um quarto só seu, muitos homens a amá-la.
Acordava amarga, notando com alegria reprimida que não se
interessava pelo bolo que as irmãs devoravam animalmente, com
irritante despreocupação.
Vivia
então os seus dias gloriosos. E chegava ao auge com algum pensamento
que a exaltava e a mergulhava em misticismo ardente: “Entrar para
um convento! Salvar os pobres, ser enfermeira!” Imaginava-se já
vestindo o hábito negro, o rosto pálido, os olhos piedosos e
humildes. As mãos, aquelas mãos implacavelmente coradas e largas,
emergindo, brancas e finas, das longas mangas. Ou então, com a touca
alva, olheiras cavadas pelas noites não dormidas. Entregando ao
médico, silenciosa e rapidamente, os ferros de operar. Ele a miraria
com admiração, simpatia mesmo, e quem sabe? Amor até.
Mas,
impossível ser grande num ambiente como o seu. Interrompiam-na com
as observações mais banais: “Já tomou banho, Tuda?” Ou, senão,
o olhar das pessoas de casa. Um olhar simples, distraído,
completamente alheio ao nobre fogo que ardia dentro dela. Quem
poderia persistir, pensava acabrunhada, junto de tanta vulgaridade?
E,
além disso, por que não “aconteciam coisas”? Tragédias, belas
tragédias…
Até
que descobriu a doutora. E antes de conhecê-la, já lhe pertencia.
De noite mantinha longa conversas imaginárias com a desconhecida. De
dia, escrevia-lhe cartas. Até que foi chamada: viam afinal que ela
era alguém, uma extraordinária, uma incompreendida!
Até
o dia marcado para a entrevista, Tuda não se sentiu. Viveu numa
atmosfera de febre e de ansiedade. Uma aventura. Compreendem bem? Uma
aventura.
Não
tardaria a entrar no escritório. Vai ser assim: ela é alta, tem os
cabelos curtos, olhos fortes, um busto grande. Um pouquinho gorda.
Mas ao mesmo tempo parecida com Diana, a Caçadora, da sala de
visitas.
Ela
sorri. Eu fico séria.
– Boa
tarde.
– Boa
tarde, minha filha (não seria melhor: boa tarde, irmã? Não, não
se usa).
– Vim
aqui por excesso de audácia, confiando na bondade e compreensão da
senhora. Tenho dezessete anos e acho que já posso começar a viver.
Duvidava
que tivesse tanta coragem. E mesmo o que a doutora tinha, afinal, a
ver com ela? Mas, não. Aconteceria alguma coisa. Dar-lhe-ia
trabalho, por exemplo. Poderia mandá-la viajar para colher dados
sobre… sobre a mortalidade infantil, suponhamos, ou sobre os
salários dos homens do campo. Ou poderia dizer:
– Gertrudes,
você terá um papel muito maior na vida. Você fará…
O
quê? Afinal, o que é grande? Tudo acaba… Não sei, a doutora vai
falar.
De
repente… O rapazinho coçou a orelha e disse, o ar velho que as
pessoas teimavam em emprestar aos fatos excitantes e novos:
-
Pode entrar…
Tuda
atravessou a sala, sem respirar. E encontrou-se diante da doutora.
Estava
sentada junto à mesa, rodeada de livros e papeia. Uma estranha,
séria, com uma vida própria, que Tuda não conhecia.
Fingiu
arrumar a mesa.
–Então?
– disse depois. – Uma menina chamada Gertrudes… – Riu. –
Por que é que se lembrou de vir a mim, procurar trabalho? –
iniciou, com o tato que lhe valera o lugar de conselheira na revista.
Miúda,
cabelos pretos enrolados em dois cachos sobre a nuca. O batom
pintando um pouco pra fora dos lábios, numa tentativa de
sensualidade. O rosto calmo, as mãos irrequietas. Tuda sentiu
vontade de fugir.
Há
muitos anos saíra de casa.
A
doutora falava, falava, a voz levemente rouca, o olhar vago. Sobre
diversos assuntos. Os últimos filmes, as jovens modernas, sem
orientação, más leituras, sei lá, muitas coisas. Tuda também
falava. Deixara de palpitar e a sala, a doutora tomavam aos poucos
uma disposição mais compreensível. Tuda contou alguns segredos,
sem importância. Sua mãe, por exemplo, não gostava que ela saísse
à noite, alegando sereno. Precisava operar a garganta e vivia
resfriada. Mas o pai dizia que há males que vêm para o bem e que as
amígdalas eram uma defesa o organismo. E também, o que a natureza
criara tinha sua função.
A
doutora brincava com o lápis.
– Bem,
agora já conheço você mais ou menos. Na sua carta falou num
apelido? Tudes, Tuda…
Tuda
corou. Então a estranha falou-lhe das cartas. Não podia ouvir bem
porque ficou tonta e o coração achou de lhe pulsar exatamente nos
ouvidos. “Idade difícil… todos são… quando menos se espera…”
– Essa
inquietação, tudo que você sente é mais ou menos normal, vai
passar. Você é inteligente e vai compreender o que vou lhe
explicar. A puberdade traz distúrbios e…
Não,
doutora, que humilhação. Ela já era grande demais para essas
coisas o que sentia era mais belo e mesmo…
– Isto
vai passar. Você não precisa trabalhar, nem fazer nada de
extraordinário. Se quiser – ia usar o velho “truc” e sorriu –,
se quiser arranje um namorado. Então…
Ela
era igual a Amélia, a Lídia, a todo o mundo, a todo o mundo!
A
doutora ainda falava, Tuda continuava muda, obstinadamente muda. Uma
nuvem tapou o sol e o escritório de repente sombrio e úmido. Daí a
um instante o floco de poeiras recomeçou a brilhar e a mover-se.
E
conselheira impacientou-se ligeiramente. Estava cansada. Trabalhara
tanto…
Tuda
pensava confusamente: vim perguntar o que faço de mim. Mas não
sabia resumir seu estado nessa pergunta. Além disso, receava cometer
uma excentricidade e ainda não se habituara consigo mesma.
[...]
Clarice
Lispector, in A bela e a fera
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