domingo, 12 de janeiro de 2020

O lazer da formiga

A formiga entrou no cinema porque achou a porta aberta e ninguém lhe pediu bilhete de entrada. Até aí, nada de mais, porque não é costume exigir bilhete de entrada a formigas. Elas gozam de certos privilégios, sem abusar deles.
O filme estava no meio. A formiga pensou em solicitar ao gerente que fosse interrompida a projeção para recomeçar do princípio, já que ela não estava entendendo nada; o filme era triste, e os anúncios falavam de comédia. Desistiu da ideia; talvez o cômico estivesse nisso mesmo.
A jovem sentada à sua esquerda fazia ruído ao comer pipoca, mas era uma boa alma e ofereceu pipoca à formiga. — Obrigada — respondeu ela —, estou de luto recente. — Compreendo — disse a moça —, ultimamente há muitas razões para não comer pipoca.
A formiga não estava disposta a conversar, e mudou de poltrona. Antes não o fizesse. Ficou ao lado de um senhor que coleciona formigas, e que sentiu, pelo cheiro, a raridade de sua espécie. Você será a 7001 a da minha coleção, disse ele, esfregando as mãos de contente. E abrindo uma caixinha de rapé, colocou dentro a formiga, fechou a caixinha e saiu do cinema.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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