sábado, 11 de janeiro de 2020

O bar perfeito

O Rui Carlos Ostermann e a Nilse, eu e a Lúcia quase o descobrimos. Tinha uma porta pesada de pub inglês, lá dentro o chão atapetado, as paredes forradas de madeira, iluminação discreta mas não safada, uma escada que levava a um segundo andar com cinco ou seis mesas rodeadas de cadeiras de couro preto, o difícil foi manter a conversa num nível que não destoasse da empáfia do garçom. No fim caímos na risada, de puro prazer. Turista brasileiro não tem jeito.
Eu disse “quase” o encontramos porque o bar — não lembro o nome — fica na calle M.T. de Alvear, perto do Plaza, em Buenos Aires, e o Bar Perfeito teria que estar, que remédio, em Porto Alegre. É um velho sonho. Uma noite dessas ficamos o Armando Coelho Borges, o José Onofre, o Rui e eu lamentando a falta do Bar Perfeito em nossas vidas. Começamos enumerando todos os requisitos do Bar Perfeito e terminamos, cinco doses de uísque mais tarde, na mais inconsolável fossa. O Bar Perfeito não só não existe como não pode existir, é a nostalgia do que nunca houve. O diabo é que Porto Alegre não tem nem um bar quase-perfeito onde se maldizer a falta do Bar Perfeito. É um deserto de fórmica e azulejos.
Tem o Bar City’s, certo. O bar do Plaza, certo. Mas em ambos falta aquele indefinível... o quê? Não sei, é indefinível — que distingue um bom bar perfeito. As pessoas tratam de negócios no Bar City’s e no bar do Plaza, negócios razoáveis, viáveis, e o Bar Perfeito deve ser o último refúgio do ócio inteligente. Só se deve tratar de negócios impossíveis no Bar Perfeito. Nenhuma transação pode sobreviver fora das paredes do Bar Perfeito. Você deve avisar ao barman que só atenderá ao telefone se for uma mulher com pronúncia eslava querendo falar sobre um contrabando de joias. E se um dia telefonar uma eslava para tratar de joias, você faz sinal que não está e depois sorri, melancolicamente, para o seu Old Fashioned.
O barman do Bar Perfeito deve ser, antes de tudo, um mentiroso. Ele atendia o bar do Ritz de Paris quando Scott Fitzgerald o frequentava, foi ele que dissuadiu o escritor de subir no monumento da Place Concorde e fazer xixi no povo. O barman do Bar Perfeito guardaria recados, seria uma central de banalidades. O Dr. Werner deixou dito que passa aqui às sete e se tem algum recado. Diga ao Dr. Werner que eu estive aqui e tomei um uísque e que fora isso não há nenhum recado.
O Dr. Rui perguntou se interessa um emprego no Times, doze mil dólares por mês para não fazer nada. Diga ao Dr. Rui que não interessa, mas que a Unesco mandou oferecer uma bolsa para ele, sete anos em Paris para pensar na vida, e que ele não esqueça o jantar no Armando hoje. Outra coisa, se me telefonarem da Embaixada Russa, pergunta se interessa um microfilme do plano das instalações hidráulicas do Edifício Sulacap, foi só o que eu consegui. (Tudo deve ser simulado dentro do Bar Perfeito. Menos o scotch.)
Haveria um pianista bêbado no Bar Perfeito? Um item a discutir. Play it again, Sam, ele toca e todo mundo chora. Ninguém pagaria suas contas no Bar Perfeito. Proibiríamos a entrada de todo mundo no Bar Perfeito, menos uns 17 eleitos. Uma vez por mês seria admitido um chato e ritualmente envenenado.
O Bar Perfeito certamente iria à falência em menos de um ano. Mas aí pelo menos teríamos uma memória a lamentar, o que é melhor do que nada.
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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