quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Minha hospedeira

E antes que me desse conta peguei no sono e dormi durante quatro ou cinco horas. Eram mais de dez da manhã quando acordei, com as roupas todas amarrotadas, exausto, e em minha cabeça a memória semi-esquecida da sensação horrível do dia anterior; mas estava vivo, tinha esperança e felizes pensamentos. Ao voltar para casa, já não sentia aquele terror que teria sentido se regressasse na véspera.
Na escada, no andar acima do pinheirinho, dei de encontro com a “tia”, minha hospedeira, a quem via de raro em raro, mas cuja amistosa presença me era muito agradável. Tal encontro não fora muito oportuno, pois estava sujo e três noitado, despenteado e com a barba por fazer. Cumprimentou-se e quis passar adiante. Ela sempre respeitava meu desejo de estar sozinho e de não ser observado continuamente, mas hoje parecia ter-se rompido um véu entre mim e o mundo em redor, ter-se desmoronado a barreira — ela sorriu e permaneceu parada.
Divertiu-se esta noite, hein, Sr. Haller? Não desfez a cama e decerto deve estar cansado, não?
Sim — disse eu, e tive de sorrir também — a noite de ontem foi animada e, como não quisesse interromper a paz de sua casa, acabei dormindo num hotel. Meu respeito pela calma e a honorabilidade de sua casa é muito grande, e às vezes me sinto como um “corpo estranho” nela.
Não faça pouco, Sr. Haller.
Eu só faço pouco de mim mesmo.
Pois não devia fazê-lo. Não devia sentir-se em minha casa como um “corpo estranho”. Pode viver como melhor lhe convenha e fazer o que bem entenda. Já tive muitos inquilinos distintos, verdadeiras joias de amabilidade, mas nenhum era tão sossegado ou nos incomodou menos que o senhor. E agora, quer tomar uma chávena de chá? Não me opus. Na sala de jantar, entre formosos retratos de seus antepassados e os móveis de seus avós, tomei um chá excelente e conversamos um pouco; a amável senhora, sem que o perguntasse expressamente, ficou sabendo algumas coisas a respeito de minha vida e de meus pensamentos, e ouviu-me com esse misto de respeito e de indulgência maternal que as mulheres prudentes têm para com as complicações dos homens. Falou-me também de seu sobrinho e me mostrou num quarto contíguo o trabalho que este fizera durante as últimas férias: um aparelho de rádio. Ali o esforçado jovem passava seus momentos de ócio e montara aquela máquina, seduzido pela telegrafia sem fios, prostrado de joelhos diante do deus da técnica, cujo poder possibilitou o descobrimento, após milhares de anos, de um fato que todos os pensadores sempre souberam e do qual fizeram melhor uso do que neste recente e muito imperfeito estágio atual. Falamos a propósito disso, pois a senhora era inclinada à devoção e os temas religiosos não lhe eram desagradáveis. Disse-lhe que a onipresença de todas as forças e ações eram bem conhecidas pelos antigos hindus, e a técnica havia simplesmente trazido um pouco desse fato à consciência comum, e por esse meio, no que se refere às ondas sonoras, havia construído um emissor e um receptor que ainda estavam totalmente imperfeitos. A base daquela idéia antiga, a irrealidade do tempo, não fora ainda observada pela técnica, mas naturalmente viria a ser finalmente "descoberta" e cairia nas mãos dos laboriosos engenheiros. Seria descoberto, talvez muito em breve, pois não só as imagens e acontecimentos presentes e momentâneos poderiam chegar continuamente até nós, como a música de Paris ou de Berlim se faz agora audível em Frankfurt ou em Munique, mas também tudo o que já aconteceu fica registrado e pode tornar-se atual; e que um dia, com fios ou sem eles, com ou sem ruídos, chegaremos a ouvir a voz do rei Salomão ou a de Walter von der Vogelwide. E que tudo isto, como hoje os primórdios do rádio, só servirá ao homem para fugir de si mesmo e de sua meta e envolver-se numa rede cada vez mais cerrada de distrações e ocupações inúteis. Mas disse todas essas coisas não no costumeiro tom de amargura e desdém contra os tempos atuais e a técnica, mas em tom de pilhéria e com ar de brincalhão; a senhora se ria e passamos assim uma hora juntos, a tomar chá e a nos divertirmos. Havia convidado a admirável jovem do Águia Negra para a noite de terça-feira, e não me foi fácil esperar que chegasse aquele dia; quando por fim chegou a terça-feira, tive perfeita noção da importância que tinham para mim as relações com aquela moça, uma simples desconhecida, e isso me encheu de espanto. Só pensava nela, e esperava tudo dela, estava disposto a sacrificar-lhe tudo e pôr tudo a seus pés, embora não estivesse em absoluto enamorado dela. Bastava imaginar que não compareceria ao encontro ou que dele se houvesse esquecido, para ver claramente o que ela representava para mim; o mundo me parecia então novamente vazio, os dias eram escuros e destituídos de encanto, voltava a envolver-me a cruel quietude e a morte, e não via outra saída daquele inferno silencioso senão a navalha de barbear. E a navalha de barbear não fora nada agradável para mim nestes dias, não havia perdido nada de seu antigo horror. Isto era exatamente o mais terrível: sentia uma profunda e opressiva angústia em cortar a garganta, temia a morte como uma força tão obstinada e selvagem, como se fosse o homem mais saudável do mundo e minha vida um verdadeiro paraíso. Conhecia meu estado com plena e brutal clareza e reconhecia que a tensão insuportável entre o não poder viver e o não poder morrer era o que me fazia dar tanta importância à desconhecida, à linda bailarina do Águia Negra. Era a única janela, a luminosa e diminuta abertura em minha sombria e angustiosa caverna. Era a salvação, o caminho para a liberdade. Haveria de ensinar-me a viver ou ensinar-me a morrer, haveria de tocar com sua mão firme e formosa meu coração transido, para que ele, em contato com a vida, de novo florescesse ou se tornasse em cinzas. De onde tirava ela essa força, de onde lhe vinha a magia, de que profundos abismos se elevava até ela essa profunda significação que tinha para mim? Não sabia e não me importava sabê-lo. Bastava-me saber de sua existência. Nenhuma ciência, nenhum conhecimento me importara tanto; estava saciado deles, precisamente nisto consistia a ignomínia e o tormento mais agudos de que eu padecia: ver tão claramente meu próprio estado, ter perfeita consciência dele. Via a este infeliz, a este Lobo da Estepe diante de mim como uma mosca numa teia de aranha, e contemplava como seu destino forçava o desenlace, como pendia da teia enlaçado e indefeso, como a aranha se dispunha a devorá-lo, como aparecia também uma salvadora mão. Poderia dizer as coisas mais racionais e inteligentes sobre a concatenação e os motivos do meu padecimento, da enfermidade de minha alma, de meu enfeitiçamento e de minha neurose, pois a mecânica era evidente para mim. O que mais me fazia falta, aquilo por que suspirava tão desesperadamente, não era saber e compreender, mas vida, decisão, movimento e impulso. Embora durante aqueles dois dias de espera nunca duvidasse de que minha amiga cumpriria o prometido, às últimas horas estive muito excitado e inseguro; nunca na vida esperara com tamanha ansiedade a noite de nenhum dia. E embora a tensão e a impaciência se me tornassem quase insuportáveis, aquilo me causou um grande bem: era indizivelmente formoso e novo para mim, para o desiludido que há muito tempo nada mais esperava, que não se satisfazia com o que quer que fosse; era maravilhoso correr daqui para ali o dia todo, cheio de impaciência, de inquietude e veemente expectativa, imaginar antecipadamente o encontro, a conversação, os acontecimentos da noite, barbear se e vestir-se para o encontro (com muito apuro, camisa nova, gravata nova, cordões novos nos sapatos). Fosse quem fosse aquela moça inteligente e misteriosa, que tivesse chegado até mim por este ou aquele caminho, tudo me era indiferente; ali estava, e realizara-se o prodígio de eu voltar a sentir-me um ser humano e encontrar novamente interesse na vida! Só me importava que tudo prosseguisse, abandonar-me àquela atração, seguir aquela estrela! Momento inesquecível em que tornei a vê-la! Estava sentado junto a uma mesinha no antigo e confortável restaurante, a qual eu reservara pelo telefone, sem que houvesse necessidade; examinei o cardápio e coloquei no jarro duas formosas orquídeas que comprara para presentear minha amiga. Tive de esperá-la algum tempo, mas sempre na certeza de que viria, e não me angustiei. E chegou, e deteve-se junto ao vestiário e me cumprimentou somente com um olhar atento, um tanto inquisitivo, de seus claros olhos cor de cinza. Desconfiado, fiquei observando como o moço do vestuário se comportaria com ela. Não, graças a Deus, não houve qualquer intimidade entre eles, qualquer falta de respeito; mostrou-se impecavelmente correto. E, no entanto, se conheciam, pois ela o chamou por Emil.
Quando lhe dei as orquídeas, alegrou-se e sorriu.
Muito obrigada pela sua atenção, Harry. Você queria me dar um presente, não é? E não sabia exatamente o que escolher. Não estava certo se eu ficaria satisfeita em receber o presente ou se me ofenderia, por isso escolheu orquídeas, que não passam de flores, mas são sempre muito apreciadas. Portanto, muito, muito grata. E aproveito para dizer-lhe que não quero que me traga presentes. Vivo à custa dos homens, mas não quero viver à sua custa. Mas, como você está diferente! Parece até outra pessoa! Outro dia estava como alguém que foi salvo da forca e agora já está quase um homem outra vez.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

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