E
antes que me desse conta peguei no sono e dormi durante quatro ou
cinco horas. Eram mais de dez da manhã quando acordei, com as roupas
todas amarrotadas, exausto, e em minha cabeça a memória
semi-esquecida da sensação horrível do dia anterior; mas estava
vivo, tinha esperança e felizes pensamentos. Ao voltar para casa, já
não sentia aquele terror que teria sentido se regressasse na
véspera.
Na
escada, no andar acima do pinheirinho, dei de encontro com a “tia”,
minha hospedeira, a quem via de raro em raro, mas cuja amistosa
presença me era muito agradável. Tal encontro não fora muito
oportuno, pois estava sujo e três noitado, despenteado e com a barba
por fazer. Cumprimentou-se e quis passar adiante. Ela sempre
respeitava meu desejo de estar sozinho e de não ser observado
continuamente, mas hoje parecia ter-se rompido um véu entre mim e o
mundo em redor, ter-se desmoronado a barreira — ela sorriu e
permaneceu parada.
— Divertiu-se
esta noite, hein, Sr. Haller? Não desfez a cama e decerto deve estar
cansado, não?
— Sim
— disse eu, e tive de sorrir também — a noite de ontem foi
animada e, como não quisesse interromper a paz de sua casa, acabei
dormindo num hotel. Meu respeito pela calma e a honorabilidade de sua
casa é muito grande, e às vezes me sinto como um “corpo estranho”
nela.
— Não
faça pouco, Sr. Haller.
— Eu
só faço pouco de mim mesmo.
— Pois
não devia fazê-lo. Não devia sentir-se em minha casa como um
“corpo estranho”. Pode viver como melhor lhe convenha e fazer o
que bem entenda. Já tive muitos inquilinos distintos, verdadeiras
joias de amabilidade, mas nenhum era tão sossegado ou nos incomodou
menos que o senhor. E agora, quer tomar uma chávena de chá? Não me
opus. Na sala de jantar, entre formosos retratos de seus antepassados
e os móveis de seus avós, tomei um chá excelente e conversamos um
pouco; a amável senhora, sem que o perguntasse expressamente, ficou
sabendo algumas coisas a respeito de minha vida e de meus
pensamentos, e ouviu-me com esse misto de respeito e de indulgência
maternal que as mulheres prudentes têm para com as complicações
dos homens. Falou-me também de seu sobrinho e me mostrou num quarto
contíguo o trabalho que este fizera durante as últimas férias: um
aparelho de rádio. Ali o esforçado jovem passava seus momentos de
ócio e montara aquela máquina, seduzido pela telegrafia sem fios,
prostrado de joelhos diante do deus da técnica, cujo poder
possibilitou o descobrimento, após milhares de anos, de um fato que
todos os pensadores sempre souberam e do qual fizeram melhor uso do
que neste recente e muito imperfeito estágio atual. Falamos a
propósito disso, pois a senhora era inclinada à devoção e os
temas religiosos não lhe eram desagradáveis. Disse-lhe que a
onipresença de todas as forças e ações eram bem conhecidas pelos
antigos hindus, e a técnica havia simplesmente trazido um pouco
desse fato à consciência comum, e por esse meio, no que se refere
às ondas sonoras, havia construído um emissor e um receptor que
ainda estavam totalmente imperfeitos. A base daquela idéia antiga, a
irrealidade do tempo, não fora ainda observada pela técnica, mas
naturalmente viria a ser finalmente "descoberta" e cairia
nas mãos dos laboriosos engenheiros. Seria descoberto, talvez muito
em breve, pois não só as imagens e acontecimentos presentes e
momentâneos poderiam chegar continuamente até nós, como a música
de Paris ou de Berlim se faz agora audível em Frankfurt ou em
Munique, mas também tudo o que já aconteceu fica registrado e pode
tornar-se atual; e que um dia, com fios ou sem eles, com ou sem
ruídos, chegaremos a ouvir a voz do rei Salomão ou a de Walter von
der Vogelwide. E que tudo isto, como hoje os primórdios do rádio,
só servirá ao homem para fugir de si mesmo e de sua meta e
envolver-se numa rede cada vez mais cerrada de distrações e
ocupações inúteis. Mas disse todas essas coisas não no costumeiro
tom de amargura e desdém contra os tempos atuais e a técnica, mas
em tom de pilhéria e com ar de brincalhão; a senhora se ria e
passamos assim uma hora juntos, a tomar chá e a nos divertirmos.
Havia convidado a admirável jovem do Águia Negra para a noite de
terça-feira, e não me foi fácil esperar que chegasse aquele dia;
quando por fim chegou a terça-feira, tive perfeita noção da
importância que tinham para mim as relações com aquela moça, uma
simples desconhecida, e isso me encheu de espanto. Só pensava nela,
e esperava tudo dela, estava disposto a sacrificar-lhe tudo e pôr
tudo a seus pés, embora não estivesse em absoluto enamorado dela.
Bastava imaginar que não compareceria ao encontro ou que dele se
houvesse esquecido, para ver claramente o que ela representava para
mim; o mundo me parecia então novamente vazio, os dias eram escuros
e destituídos de encanto, voltava a envolver-me a cruel quietude e a
morte, e não via outra saída daquele inferno silencioso senão a
navalha de barbear. E a navalha de barbear não fora nada agradável
para mim nestes dias, não havia perdido nada de seu antigo horror.
Isto era exatamente o mais terrível: sentia uma profunda e opressiva
angústia em cortar a garganta, temia a morte como uma força tão
obstinada e selvagem, como se fosse o homem mais saudável do mundo e
minha vida um verdadeiro paraíso. Conhecia meu estado com plena e
brutal clareza e reconhecia que a tensão insuportável entre o não
poder viver e o não poder morrer era o que me fazia dar tanta
importância à desconhecida, à linda bailarina do Águia Negra. Era
a única janela, a luminosa e diminuta abertura em minha sombria e
angustiosa caverna. Era a salvação, o caminho para a liberdade.
Haveria de ensinar-me a viver ou ensinar-me a morrer, haveria de
tocar com sua mão firme e formosa meu coração transido, para que
ele, em contato com a vida, de novo florescesse ou se tornasse em
cinzas. De onde tirava ela essa força, de onde lhe vinha a magia, de
que profundos abismos se elevava até ela essa profunda significação
que tinha para mim? Não sabia e não me importava sabê-lo.
Bastava-me saber de sua existência. Nenhuma ciência, nenhum
conhecimento me importara tanto; estava saciado deles, precisamente
nisto consistia a ignomínia e o tormento mais agudos de que eu
padecia: ver tão claramente meu próprio estado, ter perfeita
consciência dele. Via a este infeliz, a este Lobo da Estepe diante
de mim como uma mosca numa teia de aranha, e contemplava como seu
destino forçava o desenlace, como pendia da teia enlaçado e
indefeso, como a aranha se dispunha a devorá-lo, como aparecia
também uma salvadora mão. Poderia dizer as coisas mais racionais e
inteligentes sobre a concatenação e os motivos do meu padecimento,
da enfermidade de minha alma, de meu enfeitiçamento e de minha
neurose, pois a mecânica era evidente para mim. O que mais me fazia
falta, aquilo por que suspirava tão desesperadamente, não era saber
e compreender, mas vida, decisão, movimento e impulso. Embora
durante aqueles dois dias de espera nunca duvidasse de que minha
amiga cumpriria o prometido, às últimas horas estive muito excitado
e inseguro; nunca na vida esperara com tamanha ansiedade a noite de
nenhum dia. E embora a tensão e a impaciência se me tornassem quase
insuportáveis, aquilo me causou um grande bem: era indizivelmente
formoso e novo para mim, para o desiludido que há muito tempo nada
mais esperava, que não se satisfazia com o que quer que fosse; era
maravilhoso correr daqui para ali o dia todo, cheio de impaciência,
de inquietude e veemente expectativa, imaginar antecipadamente o
encontro, a conversação, os acontecimentos da noite, barbear se e
vestir-se para o encontro (com muito apuro, camisa nova, gravata
nova, cordões novos nos sapatos). Fosse quem fosse aquela moça
inteligente e misteriosa, que tivesse chegado até mim por este ou
aquele caminho, tudo me era indiferente; ali estava, e realizara-se o
prodígio de eu voltar a sentir-me um ser humano e encontrar
novamente interesse na vida! Só me importava que tudo prosseguisse,
abandonar-me àquela atração, seguir aquela estrela! Momento
inesquecível em que tornei a vê-la! Estava sentado junto a uma
mesinha no antigo e confortável restaurante, a qual eu reservara
pelo telefone, sem que houvesse necessidade; examinei o cardápio e
coloquei no jarro duas formosas orquídeas que comprara para
presentear minha amiga. Tive de esperá-la algum tempo, mas sempre na
certeza de que viria, e não me angustiei. E chegou, e deteve-se
junto ao vestiário e me cumprimentou somente com um olhar atento, um
tanto inquisitivo, de seus claros olhos cor de cinza. Desconfiado,
fiquei observando como o moço do vestuário se comportaria com ela.
Não, graças a Deus, não houve qualquer intimidade entre eles,
qualquer falta de respeito; mostrou-se impecavelmente correto. E, no
entanto, se conheciam, pois ela o chamou por Emil.
Quando
lhe dei as orquídeas, alegrou-se e sorriu.
— Muito
obrigada pela sua atenção, Harry. Você queria me dar um presente,
não é? E não sabia exatamente o que escolher. Não estava certo se
eu ficaria satisfeita em receber o presente ou se me ofenderia, por
isso escolheu orquídeas, que não passam de flores, mas são sempre
muito apreciadas. Portanto, muito, muito grata. E aproveito para
dizer-lhe que não quero que me traga presentes. Vivo à custa dos
homens, mas não quero viver à sua custa. Mas, como você está
diferente! Parece até outra pessoa! Outro dia estava como alguém
que foi salvo da forca e agora já está quase um homem outra vez.
Hermann
Hesse, in O Lobo da Estepe
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