O
ar deslocado pelas pás atirava lixo miúdo, com violência, em todas
as direções. A podridão me batia no rosto, penetrava na boca,
feria as narinas, grudava na testa. Melecas indefiníveis, gosmentas,
sabor amargo, se agarravam em meu pescoço, escorriam pelos braços.
Sentia-me
sujo e desconfortável, esquecido das balas que espoucavam ao meu
lado. Mais lamentável que porco refocilando em pocilga. Fico
espantado com minha capacidade de abstração, capaz de num momento
como esse esquecer a morte caindo sobre mim como fogo de artifício.
Mas,
com certeza, não queriam matar ninguém. Nada mais fácil que nos
acertar com aquelas metralhadoras girando como carrosséis
enlouquecidos. Ainda assim corríamos. Meu sobrinho rolava pelo chão,
levantava-se, saía em zigue-zague, com admirável agilidade. Seguido
pelas rajadas.
Houve
tempo em que observando esses helicópteros sobre a cidade, em sua
vigília fiscalizadora, associava o ruído das pás ao da liberdade.
Não sei onde encontrei isso, nada tem a ver. É algo que provoca
pânico. Fico paralisado. Na imobilidade, a mancha verde e marrom
volta.
Desta
vez, a reação foi inversa. A paralisia chegou primeiro, a mancha
depois. O marrom se move por dentro, como lagarta deslizando num
útero gelatinoso. O verde é fixo, não, não é, tem também um
movimento oscilante, leve. Se durar mais um pouco, saberei o que é.
Despreocupar,
deixar que a mancha me envolva. Antes era o medo, eu sentia que ela
poderia crescer, me tomar. Eu mergulharia através dela como se
caísse num buraco negro no universo. Agora, não me importa aonde
possa me levar, tudo o que desejo é chegar ao conhecimento.
Estar
perto, sem poder tocar. Ter a palavra na ponta da língua, e não
expressar. Sentimentos de agonia. O movimento verde é cada vez mais
ondulante, como vento a varrer arbustos. A mancha me toma, penetro
através dela, e o vento provocado pelo helicóptero agita ramos.
Vegetação.
Troncos, galhos, folhas. Não entendo como o vento das pás penetrou
assim em minha visão, sacudindo furiosamente essa floresta que faz
parte de uma lembrança. A ideia de morte me busca novamente, me
atinge como uma dessas balas luminosas que se desprendem.
Que
descem festivas do ventre bojudo do helicóptero e me fazem ver, em
relâmpagos intermitentes, o verde da mancha se definindo como
floresta. Meus olhos sofrem uma sucessão de transformações, lente
de aumento, lupa, luneta, microscópio, telescópio de longo alcance.
Me
aproximo dos troncos, faço um corte nos arbustos, nas folhas, vejo
ramificações nervosas, células, de tal modo que tenho a sensação
de me integrar a essa vegetação. No entanto tudo é rápido demais,
não há tempo para me fixar, continuo perdido dentro da mancha.
Não
distingo o marrom, sei que não pode ser terra por causa do
movimento, o marrom sai de dentro do verde, se destaca dele, não
pertence. É como se fugisse, depois de ter rompido. Outra vez uma
sensação de desligamento me arrepiando. Se ao menos acabasse esse
barulho infernal.
Se
esse helicóptero me deixasse pensar. Aliás, se me deixasse, eu não
estaria parado como um imbecil, completamente exposto ao fogo
mortífero. Corro para trás de uns tambores, rastejo para uma colina
de lixo, agora o fogo come as montanhas de detritos inflamáveis.
Por
pouco. Por muito pouco não morro e também não descubro o que vem a
ser esta mancha que me paralisa. Vejo o homem que sempre ouve rádio
subindo, alguma coisa na mão pronta a ser atirada, enquanto o
helicóptero desce sobre a sua cabeça. Descendo, sem atirar.
Descendo.
Até
bater, e o homem que sempre ouve rádio cair. O objeto de sua mão
rolando à altura do rosto, logo o helicóptero alçou voo, vertical,
imponente. Bicho bonito taí! Por um segundo, menos que isso, vi o
rosto do homem se desfazendo no meio de um forte clarão.
Aquilo
me assustou realmente. O homem era um desconhecido, invasor de minha
casa. Porém tínhamos nos ligado nos poucos dias em que convivemos.
Nem era ligação, mais um hábito. Alguém com quem falar, se eu
quisesse falar. Ouvir, quando ele queria falar. E era falastrão.
De
repente, estoura como balão em festa de criança bem à minha
frente. Há coisas que não dá para aceitar. Esta é uma delas. Me
recuso a admiti-la como normal. Sei que, se eu repetisse
continuamente “tudo bem, assim é que é!”, acabaria aceitando,
não levaria um choque.
Você
já viu uma cabeça se liquefazer? Foi a primeira. Entrou em mim
gravado em câmera lenta. O objeto emitindo uma claridade violenta.
Engraçado, não percebi nenhum som. Talvez por estar tão espantado
que conservei apenas a imagem a se repetir como tape em replay.
A
claridade se desprendeu do objeto, bomba, granada, sei lá o que,
nunca mexi com esses troços. Iluminou o rosto e começou a comer a
pele, os olhos, o nariz. Expulsava os dentes, que se esparramavam
pelo ar, estilhaçados. Roía os ossos, reduzia tudo a pasta, massa,
poeira.
E,
então, ossos, dentes, carne, pele, massa pareceram se juntar de
novo, transformando-se em poeira. Soprada por um vento que nada mais
era que o próprio ar deslocado pela claridade. Não sei se me
entendem, foi assim que vi naquele breve espaço em que o tempo
estancou.
Contar
para Adelaide, saber se as cabeças das crianças estouravam desse
modo em contato com a água gelada do mar. Loucura minha, aquilo era
apenas um pesadelo, um espectro que a perseguiu por anos e anos, algo
que ela foi alimentando na cabeça enquanto a carta não vinha.
– Proteja-se,
tio. No chão, atrás do monte de lixo.
Sim,
se eu encontrasse lugar no meio desse amontoado de gente. Vejo meu
sobrinho saltando sobre as pessoas, chutando, abrindo caminho.
Fazendo daqueles corpos uma trincheira humana, o espertinho. Se eu
contasse uma história dessas em casa, Adelaide jamais acreditaria.
O
helicóptero se afastou alguns metros, ficou imobilizado acima de
nós. Com suas pás ronronando suavemente. Certeza que nos observava,
todo eriçado, pronto para cair sobre a gente, furioso. Gato e rato.
Realmente meu sobrinho está metido numa grossa, em disputa grande.
Se
não, iam deslocar um bruta helicóptero, gastando munição, só
para caçar um coitado qualquer? Para esses infelizes que vivem
comendo lixo, basta um Civiltar sem arma. O uniforme assusta, um tapa
derruba, um grito faz com que fujam. Não admira o terror em que se
encontram.
Gastando
muita reza para pouco pecado. E eu? Entrei como Pilatos no credo.
Podia estar em casa, não tinha nada que vir com eles. No entanto, me
trouxeram por alguma razão. O mais importante era me tirar de lá.
As peças não se ajustam, por mais que eu quebre a cabeça.
Por
que me tirar? Posso impedir o quê? Ou queriam simplesmente que eu
não visse? Se colecionasse num caderno todas as perguntas que venho
fazendo nos últimos anos, teria hoje uma enciclopédia. Montaria um
Livro dos porquês, como aquele do antigo Tesouro da
Juventude.
O
helicóptero se moveu em círculos, dando a impressão de procurar.
Um homem se debruçava à porta, binóculo apontado para baixo. Meu
sobrinho e seus dois acólitos mantinham as cabeças enfiadas no lixo
a poucos metros de mim. Sinal de que também estavam com medo.
Acho
mais fácil eles morrerem por contaminação no chavascal que pelos
tiros inimigos. Continuo sem saber se o pessoal aí de cima está
apenas intimidando, ou se quer exterminar o bando. Tudo o que se ouve
são os motores, o crepitar das fogueiras e as respirações
ofegantes.
Choros
esparsos. Todo mundo na espera. Descubro que estou completamente
exposto, sem saber o que fazer para me proteger. Qual o melhor lugar,
a melhor posição em que o fogo da metralhadora não me apanhe.
Também, nunca estive na guerra e, nos filmes, não entendo a
estratégia.
O
tempo vai passando, permanecemos estatelados, como bobos, vigiados
por um urubu metálico que não se decide. Hoje em dia a gente tem de
ter muita paciência, vá pro inferno. Subitamente comecei a me
sentir bem ridículo, deitado na imundície sem nenhuma razão
aparente.
Eu
quase ia dizendo: venho falando com meus botões. Tem maior besteira
que esta: falar com os botões? Nem que fosse costureira. Mas tenho
repetido para mim mesmo que é inútil buscar explicações. O jeito
é ir aceitando, levando, vivendo momento a momento, sobrevivendo.
Somando
os segmentos para ver se no final resulta numa vida. Quando criança,
minha mãe socava na cabeça da gente os dogmas e preceitos da
Igreja. Havia palavras proibidas: Por quê? Como? Jesus está dentro
da hóstia. De que jeito? Está. O papa é infalível. Como? Ele é.
Adão
foi feito por Deus. E Deus? É, foi, sempre será. Faltava o
princípio, mas meu pai dizia que Deus era um moto-contínuo, bastava
por si. Anos mais tarde, eu passaria horas e horas no quintal de um
parente que a família considerava maluco: Sebastião Bandeira.
Sebastião
tentava montar um moto-contínuo. Era um homem rude, sem estudos, não
conhecia um princípio de física. Com paus e arames montou uma
geringonça que ficava girando dias e dias. Todavia Sebastião não
estava satisfeito, porque ele era obrigado a dar partida.
Minha
mãe nunca podia imaginar que as afirmações categóricas me
conduziam a dúvidas intransponíveis e a uma negação natural. Cada
dia a hóstia se transformava mais e mais numa rodela de farinha sem
gosto, não tinha nem o valor de uma bolachinha, tão delgada, tênue,
inócua.
Quem
não conseguia me responder, contar o porquê, era um mentiroso,
falava sem provas. O Esquema sempre me lembrou aquela Igreja católica
intangível, inquestionável. Hoje, admitimos tudo. Aos poucos,
emprenhados pelos ouvidos, fomos concordando, acabamos resignados.
Tadeu
garantia que não foi apenas a propaganda oficial a responsável pelo
amolecimento. Culpava também a química nos alimentos. Ainda mais
com a tal comida mundial, ninguém sabe se produzida aqui e exportada
ou feita fora e importada. Faz diferença se é daqui ou de lá?
O
helicóptero voltou, atirando. Voava baixo e a linha de fogo
derrubava, arrancando braços, pernas, pedaços de cabeça. Fumaça,
gritaria, lixo voando como andorinhas no verão. As pessoas não
reagiam, permaneciam estáticas debaixo da artilharia. Absolutamente
indiferentes.
Outros
corriam. Se é que se pode chamar de correria o deslocamento
arrastado de gente pesadona, vagarosa. Penso que estão numa corrida
de sacos, saltitando sem equilíbrio, loucos pela chegada. Olhos
esgazeados, não pelo medo, mas porque estão continuamente dopados.
O
helicóptero deu quatro ou cinco voltas, a esmo, atirando. As balas
provocaram fogo em várias colinas inflamáveis. A fumaceira de
plásticos e coisas podres cobriu tudo, mais espessa que fumaça de
borracha. Meus olhos ardiam, a língua secou, a garganta raspava
dolorida.
Um
tosse-tosse geral, unido aos gemidos e ao choro dos feridos
esparramados. Onde estão os Civiltares? Por que não aparecem agora
para impedir um massacre? Ora, Souza, tudo gente da mesma laia. Para
eles, quanto mais gente morrer, melhor fica, resolve-se o problema do
Esquema.
A
fumaça não me deixava ver, mas o barulho do motor foi se afastando.
Meu sobrinho ergueu a cabeça, sorridente. O homem que só comia
doces mostrava o ar apalermado, vai ver nem tinha ideia do que se
passara. O homem da ponta da mesa levantou-se com ar preocupado.
– Machucado,
tio?
– Não.
– Assustado?
– Bastante.
– Não
foi nada. Só queriam pegar a gente.
– E
olhe quantos derrubaram.
– Melhor.
Estavam condenados. Cedo ou tarde, os Civiltares fariam um rapa,
levariam a maioria. Tudo gente que fugiu dos Acampamentos, conseguiu
penetrar na cidade.
– E
agora?
– Vamos
voltar para casa.
– E
o pessoal que você matou?
– Não
matei ninguém, tio.
– Fui
eu, então?
– Sabe,
tio? O senhor é um velho moralista, um chato, sua cabeça não tem
nada a ver, está chacoalhando. Pensa na morte em termos
ultrapassados. Vou te confessar uma coisa. A minha patente no Novo
Exército tem permissão para matar.
– Permissão?
– Surpresa.
Viu só?
– Pode
ser que para matar bandidos. Não o barbeiro, nem o professor de
música ou aqueles pobres coitados molambentos.
– Os
pobres coitados invadiram sua casa, lembra-se?
– E
vocês?
– Outra
vez essa história? O senhor cansa, é um velho repetitivo. Anda
esclerosado (disse o homem da ponta da mesa).
– O
barbeiro, tio? O barbeiro não era nenhuma flor que se cheire.
– Boa
pessoa, conhecia ele há trinta anos.
– É?
Quer que te diga? Chefiava um bando naquele prédio, um bando enorme
no bairro. Uma quadrilha especializada em roubar água. E em
desalojar famílias dos apartamentos. Lembra-se que me procurou?
Quando soube que eu era capitão do Novo Exército, se apavorou.
Queria ficar ligado aos nossos, como quem não quer nada. Se tivesse
se infiltrado, estaria protegido, teria informações.
– Não
acredito numa só palavra. Calúnia contra um pobre velho.
– Quer
acreditar, acredita.
– Me
dê uma prova?
– Tio,
pensa que o Serviço de Informações do Novo Exército fica
fornecendo atestados com firma requerida, cópias, divulgação pela
imprensa?
– Não
acredito mais em você.
– Para
mim dá na mesma. Ninguém se preocupa com acreditar ou não. O que
importa é ir vivendo o melhor que se possa, até que alguém nos
apanhe.
– Os
do helicóptero quase nos apanharam (disse o homem que comia doces).
– Não
foi desta vez.
– Amanhã
a gente pega eles.
– E
o professor de música? Quem matou? Por quê?
– Oh!
Como deixar o Sherlock satisfeito? Ou é Poirot? Ou James Bond? Qual
daqueles detetives antigos que o senhor lia quando mocinho? Acho que
é isso, não é, tio? Me lembro de uma estante sua cheia de livros
policiais. Fora as coleções de revistinhas.
– Quem
matou o professor?
– Vê
se descobre. Vamos fazer um jogo? Damos as pistas, o senhor conduz a
investigação. Primeira pista: não foi um capitão.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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