domingo, 19 de janeiro de 2020

Instigado por Souza, o sobrinho revela a verdade a respeito do barbeiro. E não dá para acreditar

O ar deslocado pelas pás atirava lixo miúdo, com violência, em todas as direções. A podridão me batia no rosto, penetrava na boca, feria as narinas, grudava na testa. Melecas indefiníveis, gosmentas, sabor amargo, se agarravam em meu pescoço, escorriam pelos braços.
Sentia-me sujo e desconfortável, esquecido das balas que espoucavam ao meu lado. Mais lamentável que porco refocilando em pocilga. Fico espantado com minha capacidade de abstração, capaz de num momento como esse esquecer a morte caindo sobre mim como fogo de artifício.
Mas, com certeza, não queriam matar ninguém. Nada mais fácil que nos acertar com aquelas metralhadoras girando como carrosséis enlouquecidos. Ainda assim corríamos. Meu sobrinho rolava pelo chão, levantava-se, saía em zigue-zague, com admirável agilidade. Seguido pelas rajadas.
Houve tempo em que observando esses helicópteros sobre a cidade, em sua vigília fiscalizadora, associava o ruído das pás ao da liberdade. Não sei onde encontrei isso, nada tem a ver. É algo que provoca pânico. Fico paralisado. Na imobilidade, a mancha verde e marrom volta.
Desta vez, a reação foi inversa. A paralisia chegou primeiro, a mancha depois. O marrom se move por dentro, como lagarta deslizando num útero gelatinoso. O verde é fixo, não, não é, tem também um movimento oscilante, leve. Se durar mais um pouco, saberei o que é.
Despreocupar, deixar que a mancha me envolva. Antes era o medo, eu sentia que ela poderia crescer, me tomar. Eu mergulharia através dela como se caísse num buraco negro no universo. Agora, não me importa aonde possa me levar, tudo o que desejo é chegar ao conhecimento.
Estar perto, sem poder tocar. Ter a palavra na ponta da língua, e não expressar. Sentimentos de agonia. O movimento verde é cada vez mais ondulante, como vento a varrer arbustos. A mancha me toma, penetro através dela, e o vento provocado pelo helicóptero agita ramos.
Vegetação. Troncos, galhos, folhas. Não entendo como o vento das pás penetrou assim em minha visão, sacudindo furiosamente essa floresta que faz parte de uma lembrança. A ideia de morte me busca novamente, me atinge como uma dessas balas luminosas que se desprendem.
Que descem festivas do ventre bojudo do helicóptero e me fazem ver, em relâmpagos intermitentes, o verde da mancha se definindo como floresta. Meus olhos sofrem uma sucessão de transformações, lente de aumento, lupa, luneta, microscópio, telescópio de longo alcance.
Me aproximo dos troncos, faço um corte nos arbustos, nas folhas, vejo ramificações nervosas, células, de tal modo que tenho a sensação de me integrar a essa vegetação. No entanto tudo é rápido demais, não há tempo para me fixar, continuo perdido dentro da mancha.
Não distingo o marrom, sei que não pode ser terra por causa do movimento, o marrom sai de dentro do verde, se destaca dele, não pertence. É como se fugisse, depois de ter rompido. Outra vez uma sensação de desligamento me arrepiando. Se ao menos acabasse esse barulho infernal.
Se esse helicóptero me deixasse pensar. Aliás, se me deixasse, eu não estaria parado como um imbecil, completamente exposto ao fogo mortífero. Corro para trás de uns tambores, rastejo para uma colina de lixo, agora o fogo come as montanhas de detritos inflamáveis.
Por pouco. Por muito pouco não morro e também não descubro o que vem a ser esta mancha que me paralisa. Vejo o homem que sempre ouve rádio subindo, alguma coisa na mão pronta a ser atirada, enquanto o helicóptero desce sobre a sua cabeça. Descendo, sem atirar. Descendo.
Até bater, e o homem que sempre ouve rádio cair. O objeto de sua mão rolando à altura do rosto, logo o helicóptero alçou voo, vertical, imponente. Bicho bonito taí! Por um segundo, menos que isso, vi o rosto do homem se desfazendo no meio de um forte clarão.
Aquilo me assustou realmente. O homem era um desconhecido, invasor de minha casa. Porém tínhamos nos ligado nos poucos dias em que convivemos. Nem era ligação, mais um hábito. Alguém com quem falar, se eu quisesse falar. Ouvir, quando ele queria falar. E era falastrão.
De repente, estoura como balão em festa de criança bem à minha frente. Há coisas que não dá para aceitar. Esta é uma delas. Me recuso a admiti-la como normal. Sei que, se eu repetisse continuamente “tudo bem, assim é que é!”, acabaria aceitando, não levaria um choque.
Você já viu uma cabeça se liquefazer? Foi a primeira. Entrou em mim gravado em câmera lenta. O objeto emitindo uma claridade violenta. Engraçado, não percebi nenhum som. Talvez por estar tão espantado que conservei apenas a imagem a se repetir como tape em replay.
A claridade se desprendeu do objeto, bomba, granada, sei lá o que, nunca mexi com esses troços. Iluminou o rosto e começou a comer a pele, os olhos, o nariz. Expulsava os dentes, que se esparramavam pelo ar, estilhaçados. Roía os ossos, reduzia tudo a pasta, massa, poeira.
E, então, ossos, dentes, carne, pele, massa pareceram se juntar de novo, transformando-se em poeira. Soprada por um vento que nada mais era que o próprio ar deslocado pela claridade. Não sei se me entendem, foi assim que vi naquele breve espaço em que o tempo estancou.
Contar para Adelaide, saber se as cabeças das crianças estouravam desse modo em contato com a água gelada do mar. Loucura minha, aquilo era apenas um pesadelo, um espectro que a perseguiu por anos e anos, algo que ela foi alimentando na cabeça enquanto a carta não vinha.
Proteja-se, tio. No chão, atrás do monte de lixo.
Sim, se eu encontrasse lugar no meio desse amontoado de gente. Vejo meu sobrinho saltando sobre as pessoas, chutando, abrindo caminho. Fazendo daqueles corpos uma trincheira humana, o espertinho. Se eu contasse uma história dessas em casa, Adelaide jamais acreditaria.
O helicóptero se afastou alguns metros, ficou imobilizado acima de nós. Com suas pás ronronando suavemente. Certeza que nos observava, todo eriçado, pronto para cair sobre a gente, furioso. Gato e rato. Realmente meu sobrinho está metido numa grossa, em disputa grande.
Se não, iam deslocar um bruta helicóptero, gastando munição, só para caçar um coitado qualquer? Para esses infelizes que vivem comendo lixo, basta um Civiltar sem arma. O uniforme assusta, um tapa derruba, um grito faz com que fujam. Não admira o terror em que se encontram.
Gastando muita reza para pouco pecado. E eu? Entrei como Pilatos no credo. Podia estar em casa, não tinha nada que vir com eles. No entanto, me trouxeram por alguma razão. O mais importante era me tirar de lá. As peças não se ajustam, por mais que eu quebre a cabeça.
Por que me tirar? Posso impedir o quê? Ou queriam simplesmente que eu não visse? Se colecionasse num caderno todas as perguntas que venho fazendo nos últimos anos, teria hoje uma enciclopédia. Montaria um Livro dos porquês, como aquele do antigo Tesouro da Juventude.
O helicóptero se moveu em círculos, dando a impressão de procurar. Um homem se debruçava à porta, binóculo apontado para baixo. Meu sobrinho e seus dois acólitos mantinham as cabeças enfiadas no lixo a poucos metros de mim. Sinal de que também estavam com medo.
Acho mais fácil eles morrerem por contaminação no chavascal que pelos tiros inimigos. Continuo sem saber se o pessoal aí de cima está apenas intimidando, ou se quer exterminar o bando. Tudo o que se ouve são os motores, o crepitar das fogueiras e as respirações ofegantes.
Choros esparsos. Todo mundo na espera. Descubro que estou completamente exposto, sem saber o que fazer para me proteger. Qual o melhor lugar, a melhor posição em que o fogo da metralhadora não me apanhe. Também, nunca estive na guerra e, nos filmes, não entendo a estratégia.
O tempo vai passando, permanecemos estatelados, como bobos, vigiados por um urubu metálico que não se decide. Hoje em dia a gente tem de ter muita paciência, vá pro inferno. Subitamente comecei a me sentir bem ridículo, deitado na imundície sem nenhuma razão aparente.
Eu quase ia dizendo: venho falando com meus botões. Tem maior besteira que esta: falar com os botões? Nem que fosse costureira. Mas tenho repetido para mim mesmo que é inútil buscar explicações. O jeito é ir aceitando, levando, vivendo momento a momento, sobrevivendo.
Somando os segmentos para ver se no final resulta numa vida. Quando criança, minha mãe socava na cabeça da gente os dogmas e preceitos da Igreja. Havia palavras proibidas: Por quê? Como? Jesus está dentro da hóstia. De que jeito? Está. O papa é infalível. Como? Ele é.
Adão foi feito por Deus. E Deus? É, foi, sempre será. Faltava o princípio, mas meu pai dizia que Deus era um moto-contínuo, bastava por si. Anos mais tarde, eu passaria horas e horas no quintal de um parente que a família considerava maluco: Sebastião Bandeira.
Sebastião tentava montar um moto-contínuo. Era um homem rude, sem estudos, não conhecia um princípio de física. Com paus e arames montou uma geringonça que ficava girando dias e dias. Todavia Sebastião não estava satisfeito, porque ele era obrigado a dar partida.
Minha mãe nunca podia imaginar que as afirmações categóricas me conduziam a dúvidas intransponíveis e a uma negação natural. Cada dia a hóstia se transformava mais e mais numa rodela de farinha sem gosto, não tinha nem o valor de uma bolachinha, tão delgada, tênue, inócua.
Quem não conseguia me responder, contar o porquê, era um mentiroso, falava sem provas. O Esquema sempre me lembrou aquela Igreja católica intangível, inquestionável. Hoje, admitimos tudo. Aos poucos, emprenhados pelos ouvidos, fomos concordando, acabamos resignados.
Tadeu garantia que não foi apenas a propaganda oficial a responsável pelo amolecimento. Culpava também a química nos alimentos. Ainda mais com a tal comida mundial, ninguém sabe se produzida aqui e exportada ou feita fora e importada. Faz diferença se é daqui ou de lá?
O helicóptero voltou, atirando. Voava baixo e a linha de fogo derrubava, arrancando braços, pernas, pedaços de cabeça. Fumaça, gritaria, lixo voando como andorinhas no verão. As pessoas não reagiam, permaneciam estáticas debaixo da artilharia. Absolutamente indiferentes.
Outros corriam. Se é que se pode chamar de correria o deslocamento arrastado de gente pesadona, vagarosa. Penso que estão numa corrida de sacos, saltitando sem equilíbrio, loucos pela chegada. Olhos esgazeados, não pelo medo, mas porque estão continuamente dopados.
O helicóptero deu quatro ou cinco voltas, a esmo, atirando. As balas provocaram fogo em várias colinas inflamáveis. A fumaceira de plásticos e coisas podres cobriu tudo, mais espessa que fumaça de borracha. Meus olhos ardiam, a língua secou, a garganta raspava dolorida.
Um tosse-tosse geral, unido aos gemidos e ao choro dos feridos esparramados. Onde estão os Civiltares? Por que não aparecem agora para impedir um massacre? Ora, Souza, tudo gente da mesma laia. Para eles, quanto mais gente morrer, melhor fica, resolve-se o problema do Esquema.
A fumaça não me deixava ver, mas o barulho do motor foi se afastando. Meu sobrinho ergueu a cabeça, sorridente. O homem que só comia doces mostrava o ar apalermado, vai ver nem tinha ideia do que se passara. O homem da ponta da mesa levantou-se com ar preocupado.
Machucado, tio?
Não.
Assustado?
Bastante.
Não foi nada. Só queriam pegar a gente.
E olhe quantos derrubaram.
Melhor. Estavam condenados. Cedo ou tarde, os Civiltares fariam um rapa, levariam a maioria. Tudo gente que fugiu dos Acampamentos, conseguiu penetrar na cidade.
E agora?
Vamos voltar para casa.
E o pessoal que você matou?
Não matei ninguém, tio.
Fui eu, então?
Sabe, tio? O senhor é um velho moralista, um chato, sua cabeça não tem nada a ver, está chacoalhando. Pensa na morte em termos ultrapassados. Vou te confessar uma coisa. A minha patente no Novo Exército tem permissão para matar.
Permissão?
Surpresa. Viu só?
Pode ser que para matar bandidos. Não o barbeiro, nem o professor de música ou aqueles pobres coitados molambentos.
Os pobres coitados invadiram sua casa, lembra-se?
E vocês?
Outra vez essa história? O senhor cansa, é um velho repetitivo. Anda esclerosado (disse o homem da ponta da mesa).
O barbeiro, tio? O barbeiro não era nenhuma flor que se cheire.
Boa pessoa, conhecia ele há trinta anos.
É? Quer que te diga? Chefiava um bando naquele prédio, um bando enorme no bairro. Uma quadrilha especializada em roubar água. E em desalojar famílias dos apartamentos. Lembra-se que me procurou? Quando soube que eu era capitão do Novo Exército, se apavorou. Queria ficar ligado aos nossos, como quem não quer nada. Se tivesse se infiltrado, estaria protegido, teria informações.
Não acredito numa só palavra. Calúnia contra um pobre velho.
Quer acreditar, acredita.
Me dê uma prova?
Tio, pensa que o Serviço de Informações do Novo Exército fica fornecendo atestados com firma requerida, cópias, divulgação pela imprensa?
Não acredito mais em você.
Para mim dá na mesma. Ninguém se preocupa com acreditar ou não. O que importa é ir vivendo o melhor que se possa, até que alguém nos apanhe.
Os do helicóptero quase nos apanharam (disse o homem que comia doces).
Não foi desta vez.
Amanhã a gente pega eles.
E o professor de música? Quem matou? Por quê?
Oh! Como deixar o Sherlock satisfeito? Ou é Poirot? Ou James Bond? Qual daqueles detetives antigos que o senhor lia quando mocinho? Acho que é isso, não é, tio? Me lembro de uma estante sua cheia de livros policiais. Fora as coleções de revistinhas.
Quem matou o professor?
Vê se descobre. Vamos fazer um jogo? Damos as pistas, o senhor conduz a investigação. Primeira pista: não foi um capitão.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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