Ilustração: Darcy Penteado
A
preguiça, chave da pobreza, e outros conceitos poderosos lançados
na última folha da carta empaparam-se de suor, decompuseram-se,
manchando-me os dedos de tinta — e durante alguns dias pude
mexer-me no quintal, ver a rua, pisar na calçada, associar-me aos
filhos de Teotoninho Sabiá. Inquietava-me na verdade. Não recebi
novo folheto, daqueles que se vendiam a cem réis e tinham na capa
três faixas e letras quase imperceptíveis.
Achava-me
aparentemente em liberdade. Mas, arengando com Joaquim, na areia do
beco, ou admirando o rostinho de anjo de Teresa, assaltava-me às
vezes um desassossego, aterrorizava-me a lembrança do exercício
penoso. Vozes impacientes subiam, transformavam-se em gritos,
furavam-me os ouvidos; as minhas mãos suadas se encolhiam,
experimentando nas palmas o rigor das pancadas; uma corda me apertava
a garganta, suprimia a fala; e as duas consoantes inimigas dançavam:
d. t. Esforçava-me por esquecê-las revolvendo a terra, construindo
montes, aluindo rios e açudes.
As
amolações da carta não me saíam do pensa mento. “Fala pouco e
bem: ter-te-ão por alguém.” Não me explicaram isto — e veio-me
grande enjoo às adivinhações e aos aforismos.
Afligia-me
recordando a promessa feita no balcão, meses antes. De nada me
serviam os conselhos em negrita da última página da carta. Nenhum
ganho, talvez por me faltar ainda aprender muito. Conseguia gaguejar
sílabas, reuni-las em palavras e, gemendo, engolindo sinais,
articular um período vazio. Com certeza minha família não ia
conformar-se com resultado tão medíocre: as lições continuariam
na sala de visitas, na prensa do copiar, fiscalizadas por Mocinha.
Reproduzir-se-iam
as durezas da iniciação.
Tentei
imaginar livros. Queria vê-los, terminar as férias insossas que me
concediam. Sem dúvida estavam próximos: conversas temerosas
afastavam-me as ilusões, azedavam-me os brinquedos. Bom virem logo.
Piores que o folheto não deviam ser — e esta consideração me
incutia alguma confiança no futuro. Mas as duas infames dentais me
importunavam, resumiam temores indecisos.
Foi
por esse tempo que o negro velho apareceu, limpo, de colarinho,
gravata, botinas, roupa de cassineta, óculos. Estranhei, pois não
admitia tal decência em negros, e manifestei a surpresa em linguagem
de cozinha. Meu pai achou a observação original, enxergou nela
intenções inexistentes em mim, referiu-a na loja aos fregueses, aos
parceiros do gamão e do solo. Ouvia-a recomposta por Seu Afro,
completamente desfigurada, com palavras que não me aventuraria a
pronunciar. Responsabilizei-me pelas interpolações e adquiri uma
notoriedade momentânea, embaraçosa. Repugnava-me sair do meu canto
e representar, parecia-me que mangavam de mim. O culpado era meu pai.
Muitas
vezes me havia insultado, excedera-se em punições por causa de duas
letras, que intentava eliminar de chofre. Mas isto era indelével.
Provavelmente ele desejava enganar-se e enganar os outros. “Estão
vendo esta maravilha? Produto meu.” Desdenhava a maravilha,
decerto, apresentava objeto falsificado, mas negociante não tem os
escrúpulos comuns das pessoas comuns. Tanto elogiara as mercadorias
chinfrins expostas na prateleira que sem dificuldade esquecia as
minhas falhas evidentes e me transformava numa espécie de fechadura
garantida, com boas molas. O fabricante era ele. À força de
repetições, chegaria a supor que fechaduras de boas molas me abriam
o entendimento. E recolheria disso alguma vaidade. Tornei-me, de
qualquer forma, autor de uma frase aparatosa e amaldiçoei o negro
velho, origem dela.
Incapaz
de forjar semelhante coisa, reconhecia-me instrumento de um embuste e
desagradava-me ouvir meu pai alinhavar opiniões contraditórias.
Essa incoerência reduzia-o, desvalorizava-lhe o julgamento. Agora eu
não sabia se efetivamente era um idiota, como ele havia afirmado,
inclinava-me a ver na sentença arrasadora precipitação e exagero,
às vezes me capacitava de que emitira uma ideia razoável, ampliada
por Seu Afro. Impossível dizer onde ela estava, como tinha surgido,
mas teimavam em aceitá-la, em declará-la minha, e isto me deixava
perplexo.
A
reviravolta de meu pai alvoroçava-me. O juízo favorável e
imprevisto levá-lo-ia talvez a jogar-me segunda isca louvando o
papel escrito, engabelar-me, obrigar-me a iniciar a leitura do volume
temeroso que me andava na imaginação « estragava os divertimentos
na areia do beco. Desgraças iriam surgir. O riso grosso amorteceria,
a voz atroaria, rouca, um pedaço de pau me bateria nas palmas das
mãos úmidas.
Mas
os sustos esmoreceram, vieram receios diversos. Houve um transtorno,
e isto se operou sem que eu revelasse que alguma coisa se havia
alterado cá dentro. Pouco a pouco mudei. Arrojaram-me numa aventura,
o começo de uma série de aventuras funestas. Quando iam
cicatrizando as lesões causadas pelo alfabeto, anunciaram-me o
desígnio perverso — e as minhas dores voltaram. De fato estavam
apenas adormecidas, a cicatrização fora na superfície, e às vezes
a carne se contraía e rasgava, o interior se revolvia, abalavam-me
tormentos indeterminados, semelhantes aos que me produziam as
histórias de almas do outro mundo. Desânimo, covardia.
A
notícia veio de supetão: iam meter-me na escola. Já me haviam
falado nisso, em horas de zanga, mas nunca me convencera de que
realizassem a ameaça. A escola, segundo informações dignas de
crédito, era um lugar para onde se enviavam as crianças rebeldes.
Eu me comportava direito: encolhido e morno, deslizava como sombra.
As minhas brincadeiras eram silenciosas. E nem me afoitava a
incomodar as pessoas grandes com perguntas. Em consequência, possuía
ideias absurdas, apanhadas em ditos ouvidos na cozinha, na loja,
perto dos tabuleiros de gamão. A escola era horrível — e eu não
podia negá-la, como negara o inferno. Considerei a resolução de
meus pais uma injustiça.
Procurei
na consciência, desesperado, ato que determinasse a prisão, o
exílio entre paredes escuras. Certamente haveria unia tábua para
desconjuntar-me os dedos, um homem furioso a bradar-me noções
esquivas. Lembrei-me do professor público, austero e cabeludo,
arrepiei-me calculando o vigor daqueles braços. Não me defendi, não
mostrei as razões que me fervilhavam na cabeça, a mágoa que me
inchava o coração. Inútil qualquer resistência.
Trouxeram-me
a roupa nova de fustão branco. Tentaram calçar-me os borzeguins
amarelos: os pés tinham crescido e não houve meio de reduzi-los.
Machucaram-me,
comprimiram-me os ossos. As meias rasgavam-se, os borzeguins estavam
secos, minguados. Não senti esfoladuras e advertências. As barbas
do professor eram imponentes, os músculos do professor deviam ser
tremendos. A roupa de fustão branco, engomada pela Rosenda,
juntava-se a um gorro de palha. Os fragmentos da carta de ABC,
pulverizados, atirados ao quintal, dançavam-me diante dos olhos. “A
preguiça é a chave da pobreza. Pala pouco e bem: ter-te-ão por
alguém. D, t, d, t." Quem era Terteão? Um homem desconhecido.
Iria o professor mandar-me explicar Terteão e a chave? Enorme
tristeza por não perceber nenhuma simpatia em redor. Arranjavam
impiedosos o sacrifício — e eu me deixava arrastar, mole e
resignado, rês infeliz antevendo o matadouro.
Suspenderam
o suplício, experimentaram-me uns sapatos roxos de marroquim,
folgados. Tive um largo suspiro de consolo passageiro. Pelo menos
estava livre dos calos. Para que pensar no resto? Males inevitáveis
iam chover em cima de mim. Joaquim Sabiá era feliz. D. Conceição,
ocupada no oratório, dirigindo-se aos santos, largava-o na areia do
beco.
Lavaram-me,
esfregaram-me, pentearam-me, portaram-me as unhas sujas de terra. E,
com a roupa nova de fustão branco, os sapatos roxos de marroquim, o
gorro de palha, folhas de almaço numa caixa, penas, lápis, uma
brochura de capa amarela, saí de casa, tão perturbado que não vi
para onde me levavam. Nem tinha tido a curiosidade de informar-me:
estava certo de que seria entregue ao sujeito barbado e severo,
residente no largo, perto da igreja.
Conduziram-me
à Rua da Palha, mas só mais tarde notei que me achava lá, numa
sala pequena. Avizinharam-me de uma senhora baixinha, gordinha, de
cabelos brancos. Fileiras de alunos perdiam-se num aglomerado
confuso. As minhas mãos frias não acertavam com os objetos
guardados na caixa; os olhos vagueavam turvos, buscando uma saliência
na massa indistinta; a voz da mulher gorda sussurrava docemente.
Dias
depois, vi chegar um rapazinho seguro por dois homens. Resistia,
debatia-se, mordia, agarrava-se à porta e urrava, feroz. Entrou aos
arrancos, e se conseguia soltar-se, tentava ganhar a calçada. Foi
difícil subjugar o bicho brabo, sentá-lo, imobilizá-lo. O garoto
caiu num choro largo. Examinei-o com espanto, desprezo e inveja. Não
me seria possível espernear, berrar daquele jeito, exibir força,
escoicear, utilizar os dentes, cuspir nas pessoas, espumante e
selvagem.
Tinham-me
domado. Na civilização e na fraqueza, ia para onde me impeliam,
muito dócil, muito leve, como os pedaços da carta de A B C,
triturados, soltos no ar.
Graciliano
Ramos, in Infância
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