sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Escola

Ilustração: Darcy Penteado

A preguiça, chave da pobreza, e outros conceitos poderosos lançados na última folha da carta empaparam-se de suor, decompuseram-se, manchando-me os dedos de tinta — e durante alguns dias pude mexer-me no quintal, ver a rua, pisar na calçada, associar-me aos filhos de Teotoninho Sabiá. Inquietava-me na verdade. Não recebi novo folheto, daqueles que se vendiam a cem réis e tinham na capa três faixas e letras quase imperceptíveis.
Achava-me aparentemente em liberdade. Mas, arengando com Joaquim, na areia do beco, ou admirando o rostinho de anjo de Teresa, assaltava-me às vezes um desassossego, aterrorizava-me a lembrança do exercício penoso. Vozes impacientes subiam, transformavam-se em gritos, furavam-me os ouvidos; as minhas mãos suadas se encolhiam, experimentando nas palmas o rigor das pancadas; uma corda me apertava a garganta, suprimia a fala; e as duas consoantes inimigas dançavam: d. t. Esforçava-me por esquecê-las revolvendo a terra, construindo montes, aluindo rios e açudes.
As amolações da carta não me saíam do pensa mento. “Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.” Não me explicaram isto — e veio-me grande enjoo às adivinhações e aos aforismos.
Afligia-me recordando a promessa feita no balcão, meses antes. De nada me serviam os conselhos em negrita da última página da carta. Nenhum ganho, talvez por me faltar ainda aprender muito. Conseguia gaguejar sílabas, reuni-las em palavras e, gemendo, engolindo sinais, articular um período vazio. Com certeza minha família não ia conformar-se com resultado tão medíocre: as lições continuariam na sala de visitas, na prensa do copiar, fiscalizadas por Mocinha.
Reproduzir-se-iam as durezas da iniciação.
Tentei imaginar livros. Queria vê-los, terminar as férias insossas que me concediam. Sem dúvida estavam próximos: conversas temerosas afastavam-me as ilusões, azedavam-me os brinquedos. Bom virem logo. Piores que o folheto não deviam ser — e esta consideração me incutia alguma confiança no futuro. Mas as duas infames dentais me importunavam, resumiam temores indecisos.
Foi por esse tempo que o negro velho apareceu, limpo, de colarinho, gravata, botinas, roupa de cassineta, óculos. Estranhei, pois não admitia tal decência em negros, e manifestei a surpresa em linguagem de cozinha. Meu pai achou a observação original, enxergou nela intenções inexistentes em mim, referiu-a na loja aos fregueses, aos parceiros do gamão e do solo. Ouvia-a recomposta por Seu Afro, completamente desfigurada, com palavras que não me aventuraria a pronunciar. Responsabilizei-me pelas interpolações e adquiri uma notoriedade momentânea, embaraçosa. Repugnava-me sair do meu canto e representar, parecia-me que mangavam de mim. O culpado era meu pai.
Muitas vezes me havia insultado, excedera-se em punições por causa de duas letras, que intentava eliminar de chofre. Mas isto era indelével. Provavelmente ele desejava enganar-se e enganar os outros. “Estão vendo esta maravilha? Produto meu.” Desdenhava a maravilha, decerto, apresentava objeto falsificado, mas negociante não tem os escrúpulos comuns das pessoas comuns. Tanto elogiara as mercadorias chinfrins expostas na prateleira que sem dificuldade esquecia as minhas falhas evidentes e me transformava numa espécie de fechadura garantida, com boas molas. O fabricante era ele. À força de repetições, chegaria a supor que fechaduras de boas molas me abriam o entendimento. E recolheria disso alguma vaidade. Tornei-me, de qualquer forma, autor de uma frase aparatosa e amaldiçoei o negro velho, origem dela.
Incapaz de forjar semelhante coisa, reconhecia-me instrumento de um embuste e desagradava-me ouvir meu pai alinhavar opiniões contraditórias. Essa incoerência reduzia-o, desvalorizava-lhe o julgamento. Agora eu não sabia se efetivamente era um idiota, como ele havia afirmado, inclinava-me a ver na sentença arrasadora precipitação e exagero, às vezes me capacitava de que emitira uma ideia razoável, ampliada por Seu Afro. Impossível dizer onde ela estava, como tinha surgido, mas teimavam em aceitá-la, em declará-la minha, e isto me deixava perplexo.
A reviravolta de meu pai alvoroçava-me. O juízo favorável e imprevisto levá-lo-ia talvez a jogar-me segunda isca louvando o papel escrito, engabelar-me, obrigar-me a iniciar a leitura do volume temeroso que me andava na imaginação « estragava os divertimentos na areia do beco. Desgraças iriam surgir. O riso grosso amorteceria, a voz atroaria, rouca, um pedaço de pau me bateria nas palmas das mãos úmidas.
Mas os sustos esmoreceram, vieram receios diversos. Houve um transtorno, e isto se operou sem que eu revelasse que alguma coisa se havia alterado cá dentro. Pouco a pouco mudei. Arrojaram-me numa aventura, o começo de uma série de aventuras funestas. Quando iam cicatrizando as lesões causadas pelo alfabeto, anunciaram-me o desígnio perverso — e as minhas dores voltaram. De fato estavam apenas adormecidas, a cicatrização fora na superfície, e às vezes a carne se contraía e rasgava, o interior se revolvia, abalavam-me tormentos indeterminados, semelhantes aos que me produziam as histórias de almas do outro mundo. Desânimo, covardia.
A notícia veio de supetão: iam meter-me na escola. Já me haviam falado nisso, em horas de zanga, mas nunca me convencera de que realizassem a ameaça. A escola, segundo informações dignas de crédito, era um lugar para onde se enviavam as crianças rebeldes. Eu me comportava direito: encolhido e morno, deslizava como sombra. As minhas brincadeiras eram silenciosas. E nem me afoitava a incomodar as pessoas grandes com perguntas. Em consequência, possuía ideias absurdas, apanhadas em ditos ouvidos na cozinha, na loja, perto dos tabuleiros de gamão. A escola era horrível — e eu não podia negá-la, como negara o inferno. Considerei a resolução de meus pais uma injustiça.
Procurei na consciência, desesperado, ato que determinasse a prisão, o exílio entre paredes escuras. Certamente haveria unia tábua para desconjuntar-me os dedos, um homem furioso a bradar-me noções esquivas. Lembrei-me do professor público, austero e cabeludo, arrepiei-me calculando o vigor daqueles braços. Não me defendi, não mostrei as razões que me fervilhavam na cabeça, a mágoa que me inchava o coração. Inútil qualquer resistência.
Trouxeram-me a roupa nova de fustão branco. Tentaram calçar-me os borzeguins amarelos: os pés tinham crescido e não houve meio de reduzi-los.
Machucaram-me, comprimiram-me os ossos. As meias rasgavam-se, os borzeguins estavam secos, minguados. Não senti esfoladuras e advertências. As barbas do professor eram imponentes, os músculos do professor deviam ser tremendos. A roupa de fustão branco, engomada pela Rosenda, juntava-se a um gorro de palha. Os fragmentos da carta de ABC, pulverizados, atirados ao quintal, dançavam-me diante dos olhos. “A preguiça é a chave da pobreza. Pala pouco e bem: ter-te-ão por alguém. D, t, d, t." Quem era Terteão? Um homem desconhecido. Iria o professor mandar-me explicar Terteão e a chave? Enorme tristeza por não perceber nenhuma simpatia em redor. Arranjavam impiedosos o sacrifício — e eu me deixava arrastar, mole e resignado, rês infeliz antevendo o matadouro.
Suspenderam o suplício, experimentaram-me uns sapatos roxos de marroquim, folgados. Tive um largo suspiro de consolo passageiro. Pelo menos estava livre dos calos. Para que pensar no resto? Males inevitáveis iam chover em cima de mim. Joaquim Sabiá era feliz. D. Conceição, ocupada no oratório, dirigindo-se aos santos, largava-o na areia do beco.
Lavaram-me, esfregaram-me, pentearam-me, portaram-me as unhas sujas de terra. E, com a roupa nova de fustão branco, os sapatos roxos de marroquim, o gorro de palha, folhas de almaço numa caixa, penas, lápis, uma brochura de capa amarela, saí de casa, tão perturbado que não vi para onde me levavam. Nem tinha tido a curiosidade de informar-me: estava certo de que seria entregue ao sujeito barbado e severo, residente no largo, perto da igreja.
Conduziram-me à Rua da Palha, mas só mais tarde notei que me achava lá, numa sala pequena. Avizinharam-me de uma senhora baixinha, gordinha, de cabelos brancos. Fileiras de alunos perdiam-se num aglomerado confuso. As minhas mãos frias não acertavam com os objetos guardados na caixa; os olhos vagueavam turvos, buscando uma saliência na massa indistinta; a voz da mulher gorda sussurrava docemente.
Dias depois, vi chegar um rapazinho seguro por dois homens. Resistia, debatia-se, mordia, agarrava-se à porta e urrava, feroz. Entrou aos arrancos, e se conseguia soltar-se, tentava ganhar a calçada. Foi difícil subjugar o bicho brabo, sentá-lo, imobilizá-lo. O garoto caiu num choro largo. Examinei-o com espanto, desprezo e inveja. Não me seria possível espernear, berrar daquele jeito, exibir força, escoicear, utilizar os dentes, cuspir nas pessoas, espumante e selvagem.
Tinham-me domado. Na civilização e na fraqueza, ia para onde me impeliam, muito dócil, muito leve, como os pedaços da carta de A B C, triturados, soltos no ar.
Graciliano Ramos, in Infância

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