terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Vida longa à revolução!

A história provê ampla evidência para a importância crucial de uma cooperação em larga escala. Quase invariavelmente a vitória vai para aqueles que cooperam melhor — não só nas lutas entre Homo sapiens e outros animais, como também em conflitos entre diferentes grupos humanos. Assim, Roma conquistou a Grécia não porque os romanos tivessem cérebros maiores ou técnicas mais efetivas na fabricação de ferramentas, e sim porque eram capazes de cooperar mais eficazmente. Em meio à história, exércitos disciplinados derrotaram com facilidade hordas desorganizadas, e elites unificadas dominaram massas desordenadas. Em 1914, por exemplo, 3 milhões de nobres, oficiais e homens de negócios russos agiam como senhores de 180 milhões de camponeses e trabalhadores. A elite russa sabia como cooperar em defesa de seus interesses comuns, enquanto os 180 milhões de trabalhadores eram incapazes de se mobilizar com eficácia. De fato, grande parte dos esforços da elite concentrava-se em assegurar que aquelas pessoas no fundo da pirâmide jamais aprendessem a cooperar.
Para poder montar uma revolução, números nunca são suficientes. Revoluções comumente são feitas por pequenas redes de agitadores, e não pelas massas. Se você quiser desencadear uma revolução não se pergunte: “Quantas pessoas apoiam minha ideia?”. A pergunta correta a fazer é: “Entre os que me apoiam, quantos são capazes de prestar uma colaboração eficaz?”. A Revolução Russa eclodiu não quando 180 milhões de camponeses se ergueram contra o tsar, e sim quando um punhado de comunistas se pôs no lugar certo na hora certa. Em 1917, numa época em que as classes alta e média russas contavam com pelo menos 3 milhões de pessoas, o Partido Comunista era composto de 23 mil membros. 19 Assim mesmo os comunistas assumiram o controle do vasto Império Russo porque se organizaram bem. Quando a autoridade na Rússia escapou das mãos decrépitas do tsar e das igualmente trêmulas mãos do governo provisório de Kerensky, os comunistas a agarraram com diligência, empunhando as rédeas do poder como um buldogue cerrando suas mandíbulas num osso.
Os comunistas não largaram o osso até o final da década de 1980. Uma organização eficaz os manteve no poder durante oito longas décadas, e eles só caíram em razão de uma organização deficiente. Em 21 de dezembro de 1989, Nicolae Ceauşescu, o ditador comunista da Romênia, organizou uma demonstração gigantesca de apoio no centro de Bucareste. Durante os meses anteriores, a União Soviética havia retirado seu apoio aos regimes comunistas do Leste europeu, o Muro de Berlim tinha caído, e revoluções varriam a Polônia, a Alemanha Oriental, a Hungria, a Bulgária e a Tchecoslováquia. Ceauşescu, que governava a Romênia desde 1965, acreditou que poderia deter o tsunami, apesar dos tumultos contra seu governo que irromperam na cidade romena de Timişoara, em 17 de dezembro. Como uma de suas contramedidas, ele organizou aquela manifestação massiva em Bucareste para provar aos romenos e ao resto do mundo que a maioria da população ainda o amava — ou pelo menos o temia. O já enfraquecido aparelho do partido mobilizou 80 mil pessoas para encher a praça central da cidade, e os cidadãos por todo o país foram instruídos a interromper suas atividades e sintonizar seus rádios e televisões no evento.
Sob os aplausos da supostamente entusiástica multidão, Ceauşescu subiu ao balcão que dava para a praça, como fizera repetidas vezes durante as décadas anteriores. Ladeado por sua mulher Elena, funcionários graduados do partido e um bando de guarda-costas, ele começou a proferir um dos discursos sombrios que eram sua marca registrada. Durante oito minutos ele louvou as glórias do socialismo romeno, mostrando-se muito satisfeito consigo mesmo enquanto a multidão batia palmas mecanicamente. Então, alguma coisa deu errado. Você pode ver por si mesmo no YouTube. Basta fazer a busca por “Ceauşescu’s last speech” e assistir à história em plena ação.
O clip do YouTube mostra o ditador começando outra longa sentença, dizendo “Quero agradecer aos que tiveram a iniciativa e aos organizadores deste grande evento em Bucareste, considerando-o um...” — então ele fica em silêncio, os olhos arregalados, congelado em sua estupefação. Ele nunca terminou a sentença. Pode-se ver como um mundo inteiro desmorona numa fração de segundo. Alguém no público vaiou. Hoje ainda se pergunta quem foi a primeira pessoa que ousou vaiar. Depois uma segunda vaiou, e mais uma, e mais uma, e em poucos segundos as massas estavam assobiando, gritando insultos e clamando: “Ti-mi-şoa-ra! Ti-mi-şoa-ra!”.
Tudo isso aconteceu ao vivo na televisão romena, quando três quartos da população estavam grudados nas telas, os corações pulsando desenfreadamente. A famigerada polícia secreta — a Securiate — ordenou que a transmissão fosse imediatamente interrompida, mas as equipes de televisão desobedeceram. O cinegrafista apontou a câmera para o céu para que os telespectadores não pudessem ver o pânico dos líderes do partido no balcão, porém o encarregado do som continuou a gravar e os técnicos continuaram a transmitir. A Romênia inteira ouviu a multidão vaiar, enquanto Ceauşescu gritava “Alô!” Alô! Alô!”, como se o problema fosse com o microfone. Sua mulher, Elena, começou a repreender o público “Façam silêncio! Façam silêncio!”, até que Ceauşescu virou-se para ela e gritou — ainda ao vivo na televisão — “Faça silêncio você!”. O ditador fez um apelo à excitada multidão na praça, implorando: “Camaradas! Camaradas! Façam silêncio, camaradas!”.
Mas os camaradas não queriam ficar em silêncio. A Romênia comunista ruiu quando 80 mil pessoas na praça central de Bucareste se deram conta de que eram muito mais fortes do que o velho com chapéu de pele no balcão. Contudo, o que é realmente espantoso não é o momento em que o sistema desabou, mas o fato de ter conseguido sobreviver durante décadas. Por que as revoluções são tão raras? Por que as massas às vezes batem palmas e aplaudem por séculos, obedecendo a tudo o que o homem no balcão ordena, mesmo quando em teoria poderiam avançar a qualquer momento e fazê-lo em pedaços?
Ceauşescu e seus asseclas dominaram 20 milhões de romenos durante quatro décadas porque garantiram três condições vitais. Primeiro, puseram aparatchniks comunistas leais no controle de todas as redes de cooperação, como o Exército, os sindicatos e até em associações esportivas. Segundo, impediram a criação de quaisquer organizações rivais — fossem políticas, econômicas ou sociais — que pudessem servir de base para uma cooperação anticomunista. Terceiro, contaram com o apoio de partidos comunistas irmãos na União Soviética e na Europa Oriental. Descontando tensões ocasionais, esses partidos ajudavam-se mutuamente quando necessário, ou ao menos garantiam que nenhum estranho metesse o nariz no paraíso socialista. Sob tais condições, apesar de todas as dificuldades e todo o sofrimento que a elite governante lhes infligia, os 20 milhões de romenos não se mostraram capazes de organizar uma oposição eficaz.
Ceauşescu perdeu o poder somente quando essas três condições deixaram de se sustentar. No final de década de 1980, a União Soviética retirou sua proteção e os regimes comunistas começaram a cair como peças de dominó. Em dezembro de 1989, Ceauşescu não podia contar com nenhuma assistência de fora. Aconteceu exatamente o contrário — revoluções nos países vizinhos deram alento à oposição local. Segundo, o próprio Partido Comunista cindiu-se em facções rivais. Os moderados queriam se livrar de Ceauşescu e dar início a reformas antes que fosse tarde demais. Terceiro, ao organizar a demonstração em Bucareste e transmiti-la ao vivo, o próprio Ceauşescu proveu os revolucionários de uma oportunidade perfeita para revelar seu poder e fazer uma demonstração contra ele. Que caminho para disseminar uma revolução seria mais rápido do que mostrá-la na televisão?
Mas, quando escorregou das mãos do desastrado organizador que estava no balcão, o poder não passou às massas que se encontravam na praça. Ainda que numerosas e entusiásticas, as multidões não souberam se organizar. Daí que, assim como na Rússia em 1917, o poder passou para um pequeno grupo de agentes políticos cujo único ativo era uma boa organização. A Revolução Romena foi sequestrada pela autoproclamada Frente de Salvação Nacional, que era na verdade uma cortina de fumaça para a ala moderada do Partido Comunista. A Frente não tinha laços verdadeiros com as multidões em suas demonstrações. Integrada por funcionários de hierarquia média do partido, era chefiada por Ion Iliescu, ex-membro da comitê central do Partido Comunista e ex-chefe do departamento de propaganda. Iliescu e seus camaradas na Frente de Salvação Nacional se reinventaram como políticos democratas; em todo microfone que estivesse disponível proclamavam que eles eram os líderes da revolução e depois usaram toda a sua experiência e sua rede de asseclas para assumir o controle do país e embolsar seus recursos.
Na Romênia comunista, quase tudo pertencia ao Estado. A Romênia democrática privatizou rapidamente seus ativos, vendendo-os a preços de banana a ex-comunistas, que foram os únicos a perceber o que estava acontecendo e colaboraram entre si para acumular riqueza de maneira escusa. Companhias governamentais que controlavam a infraestrutura nacional e recursos naturais foram vendidas a ex-funcionários comunistas a preços de fim de feira, enquanto os soldados de infantaria do partido compravam casas e apartamentos por centavos.
Ion Iliescu foi eleito presidente da Romênia, e seus colegas tornaram-se ministros, diretores de bancos e multimilionários. A nova elite romena que controla o país até hoje é composta na maioria por ex-comunistas e suas famílias. As massas que arriscaram o pescoço em Timişoara e em Bucareste ficaram com as migalhas, porque não souberam como cooperar e como criar uma organização eficaz que olhasse por seus interesses.
Destino semelhante teve a Revolução Egípcia de 2011. O que a televisão fez em 1989, o Facebook e o Twitter fizeram em 2011. As novas mídias ajudaram as massas a coordenar suas atividades, de modo que milhares de pessoas inundaram as ruas e as praças no momento certo para derrubar o regime de Hosni Mubarak. Contudo, uma coisa é levar 100 mil pessoas à praça Tahrir, e outra, muito diferente, é ter o controle da máquina política, apertar as mãos certas nos bastidores certos e tocar um país com eficácia. Consequentemente, quando Mubarak foi deposto, os manifestantes não conseguiram preencher a lacuna. O Egito contava somente com duas instituições suficientemente organizadas para governar o país: o Exército e a Irmandade Muçulmana. Daí, a revolução foi indevidamente apropriada primeiro pela Irmandade e depois pelo Exército.
Os ex-comunistas romenos e os generais egípcios não foram mais inteligentes ou ágeis que os antigos ditadores ou os manifestantes em Bucareste e no Cairo. Sua vantagem consistiu numa cooperação flexível. Eles cooperavam entre si melhor do que as multidões e estavam dispostos e demonstrar muito mais flexibilidade do que os tacanhos Ceauşescu e Mubarak.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã

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