A piedade
é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a
atividade do amor de si próprio, concorre para a conservação mútua
de toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro
daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as
vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém
é tentado a desobedecer à sua doce voz; é ela que impede todo o
selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho
enfermo a sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo
espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima
sublime de justiça raciocinada, faz a outrem o que queres que te
façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade
natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a
precedente: faz o teu bem com o menor mal possível a outrem. Em uma
palavra, é nesse sentimento natural, mais do que em argumentos
sutis, que é preciso buscar a causa da repugnância que todo o
homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das
máximas da educação. Embora possa competir a Sócrates e aos
espíritos da sua têmpera adquirir a virtude pela razão, há muito
tempo que o gênero humano não mais existiria se a sua conservação
tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios dos que o compõem.
Jean-Jacques
Rousseau, in Discurso sobre a
origem da desigualdade
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