sábado, 28 de dezembro de 2019

Eu atiro bem

Ilustração: Rodrigo Rosa 


Sempre disse ao senhor, eu atiro bem.
E esses dois homens, Fancho-Bode e Fulorêncio, bateram a bota no primeiro fogo que se teve com uma patrulha de Zé Bebelo. Por aquilo e isso, alguém falou que eu mesmo tinha atirado nos dois, no ferver do tiroteio. Assim, por exemplo, no circundar da confusão, o senhor sabe: quando bala raciocina. Adiante falaram que eu aquilo providenciei, motivo de evitar que mais tarde eles quisessem vir com alguma tranquibérnia ou embusteria, em fito de tirarem desforra. Nego isso, não é verdade. Nem quis, nem fiz, nem praga roguei. Morreram, porque era seu dia, deles, de boa questão. Até, o que morreu foi só um. O outro foi pego preso ― eu acho ― deve de ter acabado com dez anos em alguma boa cadeia. A cadeia de Montes Claros, quem sabe. Não sou assassino. Inventaram em mim aquele falso, o senhor sabe como é esse povo. Agora, com uma coisa, eu concordo: se eles não tivessem morrido no começo, iam passar o resto do tempo todo me tocaiando, mais Diadorim, para com a gente aprontarem, em ocasião, alguma traição ou maldade. Nas estórias, nos livros, não é desse jeito? A ver, em surpresas constantes, e peripécias, para se contar, é capaz que ficasse muito e mais engraçado. Mas, qual, quando é a gente que está vivendo, no costumeiro real, esses floreados não servem: o melhor mesmo, completo, é o inimigo traiçoeiro terminar logo, bem alvejado, antes que alguma tramóia perfaça! Também, sei o que digo: em toda a parte, por onde andei, e mesmo sendo de ordem e paz, conforme sou, sempre houve muitas pessoas que tinham medo de mim. Achavam que eu era esquisito.
Só o que mesmo devo de dizer, como atiro bem! que vivo ainda por encontrar quem comigo se iguale, em pontaria e gatilho. Por meu bom, de desde mocinho. Alemão Vupes pouco me ensinou. Naquele tempo, já eu era. Dono de qualquer cano de fogo! revólver, clavina, espingarda, fuzil reiúno, trabuco, clavinote ou rifle. Honras não conto alto, porque acho que acerto natural assim é de Deus, dom dado. Pelo que compadre meu Quelemém me explicou! que eu devo de, noutra vida, por certo em encarnação, ter trabalhado muito em mira em arma. Seja? Pontaria, o senhor concorde, é um talento todo, na ideia. O menos é no olho, compasso. AqueleVupes era profeta? Certa vez, entrei num salão, os companheiros careciam que eu jogasse, mor de inteirar a parceiragem. Bilhar ― quero dizer. Eu não sabia, total. Tinha nunca botado a mão naquilo. ― Faz mal nenhum ― o Advindo disse. ― Você forma comigo, que sou tão no taco. João Nonato, com o Escopil, jogam de contra-lado... Aceitei. Combinado ficou que o Advindo pudesse me superintender e pronunciar cada toque, com palavras e noção de conselhos, mas sem licença de apoiar mão em minha mão ou braço, nem encostar dedo no taco. E de ver que, mesmo do jeito, não bobeei um ceitil! O Advindo me lecionava o rumo medido da vantagem, e eu encurvava o corpo, amolecia barriga e taqueava o meu chofre, querendo aquilo no verde ―! era o justo repique ― umas carambolas de todos estalos, retruque e recompletas, com recuanço, ladeio perfeito, efeito produzido e reproduzido; por fim, eu me reprazia mais escutando rebrilhar o concôco daquelas bolas umas nas outras, deslizadas... E pois, conforme dizia, por meu tiro me respeitavam, quiseram pôr apelido em mim! primeiro, Cerzidor, depois Tatarana, lagarta-de-fogo. Mas firme não pegou. Em mim, apelido quase que não pegava. Será: eu nunca esbarro pelo quieto, num feitío?
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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