Ilustração: Rodrigo Rosa
Sempre
disse ao senhor, eu atiro bem.
E
esses dois homens, Fancho-Bode e Fulorêncio, bateram a bota no
primeiro fogo que se teve com uma patrulha de Zé Bebelo. Por aquilo
e isso, alguém falou que eu mesmo tinha atirado nos dois, no ferver
do tiroteio. Assim, por exemplo, no circundar da confusão, o senhor
sabe: quando bala raciocina. Adiante falaram que eu aquilo
providenciei, motivo de evitar que mais tarde eles quisessem vir com
alguma tranquibérnia ou embusteria, em fito de tirarem desforra.
Nego isso, não é verdade. Nem quis, nem fiz, nem praga roguei.
Morreram, porque era seu dia, deles, de boa questão. Até, o que
morreu foi só um. O outro foi pego preso ― eu acho ― deve de ter
acabado com dez anos em alguma boa cadeia. A cadeia de Montes Claros,
quem sabe. Não sou assassino. Inventaram em mim aquele falso, o
senhor sabe como é esse povo. Agora, com uma coisa, eu concordo: se
eles não tivessem morrido no começo, iam passar o resto do tempo
todo me tocaiando, mais Diadorim, para com a gente aprontarem, em
ocasião, alguma traição ou maldade. Nas estórias, nos livros, não
é desse jeito? A ver, em surpresas constantes, e peripécias, para
se contar, é capaz que ficasse muito e mais engraçado. Mas, qual,
quando é a gente que está vivendo, no costumeiro real, esses
floreados não servem: o melhor mesmo, completo, é o inimigo
traiçoeiro terminar logo, bem alvejado, antes que alguma tramóia
perfaça! Também, sei o que digo: em toda a parte, por onde andei, e
mesmo sendo de ordem e paz, conforme sou, sempre houve muitas pessoas
que tinham medo de mim. Achavam que eu era esquisito.
Só
o que mesmo devo de dizer, como atiro bem! que vivo ainda por
encontrar quem comigo se iguale, em pontaria e gatilho. Por meu bom,
de desde mocinho. Alemão Vupes pouco me ensinou. Naquele tempo, já
eu era. Dono de qualquer cano de fogo! revólver, clavina,
espingarda, fuzil reiúno, trabuco, clavinote ou rifle. Honras não
conto alto, porque acho que acerto natural assim é de Deus, dom
dado. Pelo que compadre meu Quelemém me explicou! que eu devo de,
noutra vida, por certo em encarnação, ter trabalhado muito em mira
em arma. Seja? Pontaria, o senhor concorde, é um talento todo, na
ideia. O menos é no olho, compasso. AqueleVupes era profeta? Certa
vez, entrei num salão, os companheiros careciam que eu jogasse, mor
de inteirar a parceiragem. Bilhar ― quero dizer. Eu não sabia,
total. Tinha nunca botado a mão naquilo. ― Faz mal nenhum ― o
Advindo disse. ― Você forma comigo, que sou tão no taco. João
Nonato, com o Escopil, jogam de contra-lado... Aceitei. Combinado
ficou que o Advindo pudesse me superintender e pronunciar cada toque,
com palavras e noção de conselhos, mas sem licença de apoiar mão
em minha mão ou braço, nem encostar dedo no taco. E de ver que,
mesmo do jeito, não bobeei um ceitil! O Advindo me lecionava o rumo
medido da vantagem, e eu encurvava o corpo, amolecia barriga e
taqueava o meu chofre, querendo aquilo no verde ―! era o justo
repique ― umas carambolas de todos estalos, retruque e recompletas,
com recuanço, ladeio perfeito, efeito produzido e reproduzido; por
fim, eu me reprazia mais escutando rebrilhar o concôco daquelas
bolas umas nas outras, deslizadas... E pois, conforme dizia, por meu
tiro me respeitavam, quiseram pôr apelido em mim! primeiro,
Cerzidor, depois Tatarana, lagarta-de-fogo. Mas firme não pegou. Em
mim, apelido quase que não pegava. Será: eu nunca esbarro pelo
quieto, num feitío?
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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