Sempre
me deu vontade de morar numa dessas antigas ruazinhas pintadas numa
tela. Se, porém, me mostrassem o original, ficaria indiferente,
creio eu. Dizeres que no mundo da tela não há poluição sonora
etc. seria um motivo demasiadamente óbvio. Que há lá
tranquilidade, há. Mas tranquilidade eu consigo em certas horas aqui
mesmo, em certas casas à prova de crianças. Verdade que é uma
tranquilidade intermitente — por isso mesmo ótima. Não é como
essa tranquilidade dos campos — contínua, anestesiante. E, depois,
vocês nem imaginam como o gado é contagioso! A gente chega a ter
medo de ficar mugindo...
Bem,
no que estava eu ruminando? A ruazinha aquela! Me lembro
especialmente de uma tela de Sisley. Por que Sisley? Porque, na minha
provinciana adolescência — época em que a gente devorava a vida
através dos livros —, eu me deliciava na Biblioteca Pública do
Estado com as revistas de arte à disposição do público: Art
et Décoration, Die Kunst, L’Art Vivant, Le Crapouillot
— são as que me lembram agora. De modo que, se não cito nenhum
pintor nacional, como alguns reclamariam, a culpa não é minha.
Aquele recolhimento fervoroso entre os livros — menos os de estudo
— foi a época mais viva que eu tive, antes que a vida propriamente
dita me pegasse, me rolasse, me não sei o quê. Daí se explica
certo europeísmo encontradiço em meus poemas: aqui uma referência
à Condessa de Noialles, ali a Gertrude Stein (uma europeia, sim!),
mais além à pintora Marie Laurencin. Não houve, pois, esnobismo.
Nem me estou desculpando de coisa alguma. Estou apenas dando o
depoimento de alguém da minha geração.
Mário Quintana,
in A
vaca e o hipogrifo
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