Não
lembro a primeira vez. Mas aqui e ali comecei a ouvir comentários:
aquela é a cidade que interessa, é onde as coisas acontecem, o
futuro fugiu para lá. Advertências que repetiam a verdade mais
simples, não há como negar. Hoje, parecem ressoar a voz de um
oráculo. Mas era uma verdade que entendi mal, que me apressei em
traduzir totalmente errado, nos termos da euforia de um menino, ou
até de um tolo.
Talvez
eu pudesse ter ficado como estava, talvez o futuro ainda dormisse bem
longe até hoje, se naquela noite eu não tivesse ido ao teatro. Três
atores representavam vários papéis e a história da peça quase não
importava. O espetáculo consistia muito mais na velocidade e na
perfeição das metamorfoses dos atores. Em poucos minutos, eles
trocavam de roupa, peruca e maquiagem, encarnavam outra voz, outra
personalidade, e tudo com um vigor que só podia nascer de um tipo de
vida.
No
final da peça, algumas fileiras à minha frente, aconteceu. Quando
as pessoas se levantaram, entrevi, no intervalo das cabeças, um
homem parecido com alguém que eu conhecia. Talvez fosse a dança de
tantos rostos a meu redor, mas o efeito era o de muitas feições
distintas convergindo e se sobrepondo no ar transparente.
Uma
desconfiança incômoda me obrigou a olhar melhor e então deparei
com um sujeito igual a mim mesmo, apenas um pouco mais novo. Sacudido
por uma espécie de insulto, experimentei o temor de estar sendo
sorrateiramente substituído.
Com
os olhos naquele homem, esqueci que devia continuar andando. As
pessoas atrás de mim, na minha fileira, me repreenderam com
resmungos. Tentei me livrar do meu estupor, mas o máximo que
consegui foi observar o homem da maneira mais discreta que podia. As
fileiras escorriam todas na mesma direção, o público escoava
ligeiro para o funil da saída e logo o perdi de vista.
Se
uma coisa deriva sempre de outra, se todo fato espalha efeitos em
todas as direções, por que não ver no que se seguiu uma
continuação, um sistema? Podia parecer um desses acasos bobos, uma
dessas situações tão corriqueiras que nem paramos para pensar. Em
um intervalo de semanas, pelo menos três amigos se aproximaram de
mim para dizer que me tinham visto em lugares que eu não conhecia,
locais aonde eu nunca fora, fazendo coisas que eu absolutamente não
podia ter feito, porque estava ocupado, em outra parte.
Na
primeira vez, juro, tentei negar. Depois, diante da alegre certeza da
pessoa à minha frente, me resignei a ouvir em silêncio. A seguir,
de uma maneira que eu mal percebi, passei pouco a pouco a acreditar
que era eu mesmo que ia àqueles lugares e punha em prática aquelas
ações. Eu até sorria e pelo menos uma vez cheguei a inventar
explicações adicionais, coerentes, que vi serem bem aceitas pelo
meu ouvinte.
Outros
talvez não prestassem atenção. Outros talvez não encadeassem uma
coisa à outra. Sei que, mesmo na vida mais banal, há lugar para
tudo. Mas, um dia, no centro da cidade, um homem completamente
desconhecido me cumprimentou com familiaridade. O sinal fechou e,
enquanto eu atravessava a rua, o homem, andando em sentido contrário,
acenou ligeiro com a mão. Receoso de me mostrar mal-educado com
algum conhecido, correspondi ao aceno. O sinal abriu, os carros e
ônibus andaram, bloquearam minha visão e eu o perdi na multidão da
calçada oposta.
Tempos
depois, eu vinha andando distraído pela rua. Quando dei por mim, uma
pessoa que não pude reconhecer me dirigia palavras apressadas.
Mencionou de passagem um nome estranho para mim como se fosse um
amigo comum. Depois pediu desculpas pela pressa, se despediu e foi
embora. Algo desse tipo se repetiu ainda, talvez em um espaço de
alguns meses, duas ou três situações que outras pessoas poderiam
interpretar como encontros fortuitos com lunáticos, do tipo que
prolifera nas ruas, eu sei. Mas a minha lua é a mesma de todo mundo.
Aos
poucos, as atividades que esses desconhecidos atribuíam a mim
começaram a me parecer familiares. As pessoas que eles mencionavam
chegaram a se tornar íntimas para mim, com seus nomes e suas
ambições cotidianas. Tudo ia se incorporando à minha memória. O
meu passado se expandia com um novo elenco de pessoas e fatos, ao
mesmo tempo em que o meu presente também se ampliava, numa espécie
de movimento de conquista. Minha vida abarcava muitas outras vidas e
assim eu conseguia me sentir mais vivo do que nunca.
Um
dia, numa rua do centro, tomei coragem. Arrisquei cumprimentar alguém
que eu, com absoluta certeza, não conhecia. Após um instante de
surpresa bem natural, nas circunstâncias, a pessoa respondeu ao meu
cumprimento, de forma discreta. Sua expressão deu a entender que,
naquele momento, não tinha tempo para conversar comigo como
gostaria, e seguiu adiante. Por que pedir mais? Vi naquilo uma
confirmação, e não poderia ser de outro modo. Agora, eu olhava o
mundo à minha volta com o ardor de uma simpatia desconhecida. Via as
pessoas entrando e saindo pelas portarias dos prédios, contemplava a
fila de cabeças voltadas para mim nas janelas dos ônibus e sabia
que no mundo ninguém mais seria para mim um estranho. Vivi assim um
tempo, até que, certa manhã, o telefone me acordou. A voz do outro
lado avisou que uma determinada pessoa havia morrido. Citou um nome,
que não reconheci nem me dei ao trabalho de memorizar. Mas anotei a
hora e o lugar do funeral. A voz ainda lamentou que ele tivesse
morrido ainda jovem, e garantiu que “todos” iriam lá.
Cheguei
em cima da hora, um pouco atrasado até. Achei que por isso ninguém
se aproximou para me cumprimentar. Raciocinei que temiam perturbar a
cerimônia. Uma música de órgão descia gelada das paredes e só um
segundo antes de o caixão ser fechado distingui as feições do
defunto. Foi rápido, uma sombra correu sobre o véu transparente.
Mas creio ter reconhecido o homem que eu, nem sei quanto tempo antes,
vira no teatro. O homem igual a mim. Com a tampa fixada em seu lugar,
o caixão deslizou por uma esteira na direção de uma porta e
desapareceu no crematório. Antes que eu me refizesse da surpresa,
todos haviam ido embora sem sequer se despedir de mim. Em poucos
dias, as coisas começaram a mudar. Encostei no balcão de uma
lanchonete, pedi um cafezinho, na esperança de que o garçom
conversasse um minuto comigo, sobre o tempo, o trânsito, o que
fosse. Mas ele logo virou a cara para o meu sorriso, como se
estivesse diante de um estranho, um intrometido.
A
rigor, aqui e ali, eu descobria motivos para pensar que me
consideravam um importuno. Em lugares onde eu esperava ser recebido
como um irmão, me rechaçavam com a frieza e a hostilidade educada
que só se descarrega sobre os intrusos. Mesmo nos ambientes que,
antes, eram para mim perfeitamente familiares — meu trabalho, minha
vizinhança, meus colegas — eu me via tratado como alguém
indesejável. Foi nessa altura que resolvi me mudar para uma outra
cidade, a cidade de que eu ouvia falar com tanta simpatia. Tratei de
me adaptar o mais depressa possível. Tentei refazer minha vida,
reconstituir à minha volta um convívio humano que me justificasse.
Mas isso se revelou difícil. Pelo menos, eu não era tratado como um
invasor. Acho que eu poderia ter vivido assim bastante tempo, sem
maiores problemas. Mas agora isso não será possível. Há poucos
dias, em uma barbearia, rodeado de espelhos que corriam diante de mim
e às minhas costas, entendi o que era o futuro e por que ele estava
nesta cidade. O barbeiro terminou de aparar meu cabelo, ergueu dos
meus ombros o pano branco com um floreio do braço e então me
levantei. Quando contemplava a mim mesmo no espelho, reparei com o
canto dos olhos o reflexo de um homem, umas três cadeiras à
esquerda. Ele me fitava com insistência. Tinha um ar quase
desnorteado, na verdade, e achei que já devia estar me observando
desde algum tempo.
Por
instinto, desviei o rosto pois o homem me pareceu agitado. Fingi que
não o via e estou certo de que o deixei convencido disso. Mas os
espelhos permitiam olhares diagonais. Por esse ângulo, pude notar
que o sujeito era extraordinariamente parecido comigo. Apenas um
pouco mais velho. Fui para a rua. Forcei minhas pernas a caminhar e
vi a calçada fugindo para trás sob os meus passos. Sei agora por
que vim para esta cidade. O olhar admirado do homem na barbearia
foram as boas-vindas e também uma despedida para mim. Já posso
sentir o calor das chamas estalando. Mas, até que chegue a minha
vez, esse sujeito ainda vai ouvir falar muito de mim.
Rubens
Figueiredo, in Os cem melhores contos brasileiros do século
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