terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Machu Picchu


O ministério não vacilou em aceitar o fim voluntário de minha carreira.
Meu suicídio diplomático proporcionou-me a maior alegria: a de poder regressar ao Chile. Acho que o homem deve viver em sua pátria e creio que o desarraigamento dos seres humanos é uma frustração que de uma maneira ou de outra entorpece a claridade da alma. Eu não posso viver senão em minha própria terra. Não posso viver sem pôr os pés, as mãos e o ouvido nela, sem sentir a circulação de suas águas e de suas sombras, sem sentir como minhas raízes buscam em seu barro pegajoso as substâncias maternas.
Mas antes de chegar ao Chile fiz outro descobrimento que agregaria uma nova camada ao desenvolvimento de minha poesia.
Detive-me no Peru e subi até as ruínas de Machu Picchu. Subimos a cavalo. Na época não havia estrada. Do alto vi as antigas construções de pedra rodeadas pelos altíssimos cumes dos Andes verdes. Da cidadela carcomida e roída pelo passar dos séculos despenhavamse torrentes. Massas de neblina branca levantavam-se do rio Wilcamayo. Senti-me infinitamente pequeno no centro daquele umbigo de pedra, umbigo de um mundo desabitado, orgulhoso e eminente, ao qual de algum modo eu pertencia. Senti que minhas próprias mãos tinham trabalhado ali em alguma etapa distante, cavando sulcos, alisando penhascos.
Senti-me chileno, peruano, americano. Tinha encontrado naquelas alturas difíceis, entre aquelas ruínas gloriosas e dispersas, uma profissão de fé para a continuação de meu canto.
Ali nasceu meu poema “Alturas de Machu Picchu”.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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