terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Medo agarra a gente é pelo enraizado

Fim do bom logo vem, mas. O Acrísio retornou! pasmaceira na barra do rio, a nenhuma novidade. Retornou o Jenolim! o Jequitaí estava passável. E saímos simples com a tropa, sem menos dessossego nem mais receio, serra para cima, pelos caminhos tencionados. Daí, hora grave me veio, com três léguas de marcha. Mazelas de mais pesares. E donde menos temi, no pior me vi. Titão Passos começou a me perguntar.
Titão Passos era homem liso bom; me fazia as perguntas com natureza tão honrosa, que eu não tinha ânimo de mentir, nem de me caber calado. Nem podia. De lá mais adiante, atravessado o Jequitaí, tudo ia se abrir a ser para nós todos campo de fogo e aos perigos de mortes. As turmas de cavaleiros de Zé Bebelo campeavam naquele país, caçando gente, sopitando, vigiando. Do povo morador, não faltava quem, desconfiando de nós, mandasse a eles envio de denúncia, pois todos queriam aproveitar a ocasião para se acabar com os jagunços, para sempre. ― Morrer, morrer, a gente sem luxo se cede... ― o Reinaldo disse. ― ...Mas a munição tem de chegar em poder de Joca Ramiro! Eu podia pensar tranquilo na minha morte por ali? Podia pensar no Reinaldo morrendo? E o que Titão Passos queria saber era tudo que eu soubesse, a respeito de Zé Bebelo, das malasartes que ele usava em guerra, de seus aprovados costumes, suas forças e armamentos. Tudo o que eu falasse, podia ajudar. O saber de uns, a morte de outros. Para melhor pensar, fui mal-respondendo, me calando, falando o que era vasto. Como eu ia depor? Podia? Tudo o que eu mesmo quisesse. Mas, traição, não.
Não. Nem era por retente de dever, por lei honesta nenhuma, ou floreado de noção. Mas eu não podia. Tudo dentro de mim não podia. Dou vendido em pêcas riquezas o que eu cansei naquela hora, minhas caras deviam de estar pegando fogo. Que se eu contasse, não contasse, essas ânsias. Eu não podia, como um bicho não pode deixar de comer a avistada comida, como uma bicha-fêmea não pode fugir deixando suas criazinhas em frente da morte. Eu devia? Não devia? Vi vago o adiante da noite, com sombras mais apresentadas. Eu, quem é que eu era? De que lado eu era? Zé Bebelo ou Joca Ramiro? Titão Passos... o Reinaldo... De ninguém eu era. Eu era de mim. Eu, Riobaldo. Eu não queria querer contar.
Falei e refalei inútil, consoante; e quer ver que Titão Passos aceitava aquilo assim? Me acreditava. Lembrei que ainda tinha, guardada estreito comigo, aquela lista, de nomes e coisas, de Zé Bebelo, num caderno. Alguma valia aquilo tinha? Não sei, sabia não. Andando, peguei, oculto, rasguei em pedacinhos, taquei tudo no arrojo dum riacho. Aquelas águas me lavavam. E, de tudo que a respeito do resto eu sabia, cacei em mim um esforço de me completo me esquecer. Depois, Titão Passos disse: ― Você pode ser de muita ajuda. Se a gente topar com a zebelância, você entra de bico ― fala que é um deles, que esta tropa você está levando... Com isso, me conformei. Aos poucos, mesmo compunha uma alegria, de ser capaz de auxiliar e pôr efeito, como o justo companheiro. A que, no bando de Joca Ramiro, eu havia de prestar toda a minha diligência e coragem. E nem fazia mal que eu não relatasse a respeito de Zé Bebelo mais, porquanto o prejuízo que disso se tivesse, por ele eu também padecia e pagava. No caso, em vista de que agora eu estava também sendo um ramiro, fazia parte. De pensar isso, eu desfrutei um orgulho de alegria de glória. Mas ela durou curta. Oi, barros da água do Jequitaí, que passaram diante de minha fraqueza.
Foi que Titão Passos, pensando mais, me disse! ― Tudo temos de ter cautela... Se eles já souberam notícia de que você fugiu, e te encontram, são sujeitos para quererem logo te matar imediato, por culpas de desertor... Ouvi retardado, não pude dar resposta. Me amargou no cabo da língua. Medo. Medo que maneia. Em esquina que me veio. Bananeira dá em vento de todo lado. Homem? E coisa que treme. O cavalo ia me levando sem data. Burros e mulas do lote de tropa, eu tinha inveja deles... Tem diversas invenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Pior de todas é essa! que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já principia com um grande cansaço. Em minhas fontes, cocei o aviso de que um suor meu se esfriava. Medo do que pode haver sempre e ainda não há. O senhor me entende! costas do mundo. Em tanto, eu devia de pensar tantas coisas ― que de repente podia cursar por ali gente zebebela armada, me pegavam! por al, por mal, eu estava soflagrante encostado, rendido, sem salves, atirado para morrer com o chão na mão. Devia de me lembrar de outros apertos, e dar relembro do que eu sabia, de ódios daqueles homens querentes de ver sangues e carnes, das maldades deles capazes, demorando vingança com toda judiação. Não pude, não pensava demarcado. Medo não deixava. Eu estando com um vapor na cabeça, o miolo volteado. Mudei meu coração de posto. E a viagem em nossa noite seguia. Purguei a passagem do medo! grande vão eu atravessava.
A tristeza. Aí, o Reinaldo, na paragem, veio para perto de mim. Por causa da minha tristeza, sei que de mim ele mais gostava. Sempre que estou entristecido, é que os outros gostam mais de mim, de minha companhia. Por que? Nunca falo queixa, de nada. Minha tristeza é uma volta em medida; mas minha alegria é forte demais. Eu atravessava no meio da tristeza, o Reinaldo veio. Ele bem-me-quis, aconselhou brincando: ― Riobaldo, puxa as orelhas do teu jumento... Mas amuado eu não estava. Respondi somente: ― Amigo... ― e não disse nem mais. Com toda minha cordura. Mas, de feito, eu carecia de sozinho ficar. Nem a pessoa especial do Reinaldo não me ajudava. Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas ― isso procuro. O Reinaldo comigo par a par, e a tristeza do medo me eivava de a ele não dar valor. Homem como eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero.
Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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