segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Leite derramado - 6

6

quando eu sair daqui, vamos começar vida nova numa cidade antiga, onde todos se cumprimentam e ninguém nos conheça. Vou lhe ensinar a falar direito, a usar os diferentes talheres e copos de vinho, escolherei a dedo seu guarda-roupa e livros sérios para você ler. Sinto que você leva jeito porque é aplicada, tem meigas mãos, não faz cara ruim nem quando me lava, em suma, parece uma moça digna apesar da origem humilde. Minha outra mulher teve uma educação rigorosa, mas mesmo assim mamãe nunca entendeu por que eu escolhera justamente aquela, entre tantas meninas de uma família distinta. Minha mãe era de outro século, em certa ocasião chegou a me perguntar se Matilde não tinha cheiro de corpo. Só porque Matilde era de pele quase castanha, era a mais moreninha de sete irmãs, filhas de um deputado correligionário do meu pai. Não sei se alguma vez lhe contei que já tinha visto Matilde de passagem, na porta da igreja da Candelária. Mas nunca a pude analisar como naquele dia, quando a surpreendi na pausa que antecedia o ofertório. Ela estava no coral que cantava o Réquiem, e o vestido de congregada mariana não lhe caía bem, era como uma roupa ao redor dela, solta da pele. Uma roupa rígida feito uma armadura, estranha mesmo ao corpo dela, e um corpo nu ali debaixo poderia até dançar sem dar na vista. Eram as exéquias do meu pai, no entanto eu não sabia mais me libertar de Matilde, procurava adivinhar seus movimentos mais íntimos e seus pensamentos tão distantes. Eu percebia de longe seu rubor, seu olhar em pinguepongue, seu riso contido enquanto cantava: libera anima omnium fidelium defunctorum de poenis inferni. E foi como um choque elétrico quando mamãe tocou meu cotovelo, me convocando para a comunhão. Mas assim que me levantei, me atirei de volta ao genuflexório, prevenindo um escândalo. De maneira alguma eu poderia ser visto em pé, muito menos ao lado de minha mãe, no estado indecente em que me encontrava. Então, tapando o rosto com as mãos, fazendo passar por luto minha vergonha, procurei pensar nas coisas mais tristes enquanto mamãe me consolava. Quando consegui me safar em parte do embaraço, cabisbaixo acompanhei mamãe ao altarmor, e comunguei ciente de cometer um sacrilégio pelo qual seria em breve punido. E com a hóstia ainda íntegra na língua, meio sem querer entreabri os olhos em direção ao coro, que se dissolvera. Assisti contrito ao desfecho da cerimónia, em seguida me postei com mamãe para atender à imensa fila de cumprimentos. Acolhi condolências formais, efusões de desconhecidos, mãos pegajosas e hálitos azedos, já sem grandes esperanças de Matilde. Até que a avistei ao lado dos pais, depois rapidamente entre as irmãs, depois no grupo das congregadas marianas. Vi como ela se aproximava não em linha reta, mas em parafuso, a se entreter com meio mundo à sua volta, como se estivesse numa fila de sorveteria. Mais ela vinha, mais eu ansiava por vê-la face a face, e mais me angustiava a possibilidade de perder outra vez a compostura. Chegou, me fitou com os olhos subitamente marejados, me abraçou e sussurrou no meu ouvido, coragem, Eulálio. Matilde falou Eulálio, e me confundiu. Tive um arrepio pelo seu sopro quente em meu ouvido, e outro arrepio a contrapelo, por ouvir um nome que quase me humilhava. Eu não queria ser Eulálio, só mesmo os padres me chamavam assim nos tempos de colégio. A me chamar Eulálio, preferia envelhecer e ser sepultado com meus apelidos infantis, Lalá, Lalinho. O Eulálio do meu tetravô português, passando por trisavô, bisavô, avô e pai, para mim era menos um nome do que um eco. Então a encarei e disse, não entendi. Matilde repetiu, coragem, Eulálio, e já agora, em sua voz ligeiramente rouca, parecia que meu nome Eulálio tinha uma textura. Falou meu nome como se o arranhasse um pouco, e quando num volteio se retirou, tive como temia novo arrebatamento obsceno. Já se chegavam suas seis irmãs branquinhas, logo atrás o deputado federal seu pai, de braço com a senhora sua mãe, depois viriam as congregadas marianas, mais uma ainda longa fila, e não havia alternativa. Debrucei-me, contorci-me como em cólicas, soltei-me da minha mãe aflita e disparei pela primeira porta. Cruzei a sacristia, para susto do padre e seus acólitos, e alcancei uma saída lateral da igreja. Ao deparar com gente na calçada, despi o paletó, protegi minhas pernas e me enfiei numa ruela. Mas logo na avenida Beira-Mar eu já podia caminhar como convém a um cavalheiro, a não ser pelo chapéu esquecido no banco da igreja. E no fim de extensa caminhada cheguei de mangas arregaçadas ao casarão de Botafogo, onde vi o velho chofer de minha mãe encostado no capô do Ford. Entrei pelos fundos e subi direto para o banheiro, pois tinha transpirado muito e carecia de um banho fresco. E urgia compreender melhor o desejo que me descontrolara, eu nunca havia sentido coisa semelhante. Se desejo era aquilo, posso dizer que antes de Matilde eu era casto. Quem sabe se, inadvertidamente, eu não teria me apossado da volúpia do meu pai, assim como da noite para o dia herdara gravatas, charutos, negócios, bens imóveis e uma possível carreira na política. Foi meu pai quem me apresentou às mulheres em Paris, contudo mais que as próprias francesas, sempre me impressionou o seu olhar para elas. Assim como o aroma das mulheres daqui não me impressionava tanto quanto o cheiro dele, impregnado na garçonnière que ele me emprestava. Debaixo do chuveiro eu agora me olhava quase com medo, imaginando em meu corpo toda a força e a insaciedade do meu pai. Olhando meu corpo, tive a sensação de possuir um desejo potencial equivalente ao dele, por todas as fêmeas do mundo, porém concentrado numa só mulher.
Chico Buarque de Holanda, in Leite derramado

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