Preparando
seu livro sobre o imperador Adriano, Marguerite Yourcenar encontrou
numa carta de Flaubert esta frase: “Quando os deuses tinham deixado
de existir e o Cristo ainda não viera, houve um momento único na
história, entre Cícero e Marco Aurélio, em que o homem ficou
sozinho.” Os deuses pagãos nunca deixaram de existir, mesmo com o
triunfo cristão, e Roma não era o mundo, mas no breve momento de
solidão flagrado por Flaubert o homem ocidental se viu livre da
metafísica – e não gostou, claro. Quem quer ficar sozinho num
mundo que não domina e mal compreende, sem o apoio e o consolo de
uma teologia, qualquer teologia? O monoteísmo paternal substituiu as
divindades convivais da Antiguidade, em pouco tempo Constantino
adotaria o cristianismo como a religião do império e o homem perdeu
sua oportunidade de se emancipar dos deuses.
A
ciência, pelo menos até Einstein, nunca pretendeu desafiar a
metafísica dominante, mesmo quando desmentia seus dogmas. Copérnico
cumpria seus deveres de cônego da catedral de Frauenburg, enquanto
bolava a heresia que destruiria mil anos de ensinamento da Igreja, e
seu tratado revolucionário sobre o Universo heliocêntrico foi
dedicado, sem nenhuma ironia que se saiba, ao papa Paulo III. Galileu
também foi inocentemente a Roma demonstrar na corte papal o
telescópio com o qual confirmara a teoria explosiva de Copérnico,
talvez o exemplo histórico mais acabado de falar em corda na casa de
enforcado.
Quando
foi julgado pela Inquisição, concordou em renunciar à ideia maluca
de que a Terra se movia em torno do Sol, para ficar vivo, e a frase
famosa que teria dito baixinho — “E pur se muove” — só
foi acrescentada ao relato do julgamento um século depois,
provavelmente também originando a frase: “Se não é verdade é um
bom achado.” Quando o astrônomo Joseph Halley, o do cometa,
entusiasmado com a recém-publicada Principia de Isaac Newton,
quis dar uma ideia da importância da teoria newtoniana da gravidade
e do movimento dos astros, disse que com ela “fomos admitidos aos
banquetes dos deuses”, pois até então a ciência só especulara
sobre a geometria celestial — algo como o Woody Allen dizendo que
fazer cinema sério, ao contrário de comédias, era sentar-se à
mesa com os adultos. Com Newton passamos a conversar seriamente com
os deuses. É curioso que Halley tenha preferido “deuses” a Deus,
evocando o tempo pré-cristão em que as divindades andavam entre os
homens e podiam até ser seus comensais. O trabalho de Newton fazia
parte da “filosofia natural”, o pseudônimo com que, na Europa do
século XVII, a ciência especulativa convivia com a teologia. Ir aos
banquetes com os deuses não era exatamente um ato de rebeldia com a
teologia, mas era uma maneira de trazer a metafísica de volta a um
plano humano. A luta pela emancipação continua até hoje.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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