quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Souza vai à cozinha e fica hipnotizado com o fascinante mistério de um ovo a ferver

Não deu para entender. De jeito nenhum. Fiquei paralisado, vendo a mancha marrom diante de meus olhos e o formigamento correndo pelo corpo. Sem acreditar, sem poder acreditar no que estava vendo. Por que mataram o barbeiro? E a que horas foi? Como o trouxeram para cá?
Um homem inofensivo, vivia de suas barbas, não se metia na vida dos outros. Se sabia das coisas do prédio é porque os velhos contavam. Desciam à barbearia para um bate-papo, que gente velha é dada a tais costumes antigos. Não pode ter sido um dos velhos, não teriam força.
Não tenho prática, mas posso ver que o barbeiro resistiu. A camisa toda rasgada no peito, os cortes do punhal ou da faca cheios de sangue ressequido, coagulado. Se fosse tiro, seria provavelmente um buraco redondo, pequeno. Foi alguém forte, decidido e de sangue frio. Um profissional.
Burro, claro que foi um dos três homens que invadiram. Como entrariam? Mas a que horas fizeram isso? Quando cochilei? Mas tenho o sono leve, teria acordado ao mínimo ruído. E eu estava no sofá da sala, portanto quase no meio do caminho deles. Podem também ter-me dopado.
Não adianta nada ficar pensando, o melhor é perguntar. Chamar alguém, temos de tirar o cadáver daqui, está enrijecido, vai feder daqui a pouco. Não quero empestear minha casa. E não me agrada a ideia de conviver com um defunto me rondando. Isso me encheu muito, agora. Já é demais.
A paralisação desaparece, a mancha marrom fica ainda por alguns instantes. Tenho certeza, a mancha não é mais estática, existe alguma coisa se movendo em seu interior. Cada dia toma mais forma, se eu tiver paciência, ela ainda se definirá, vou poder descobrir o que é, por quê.
Quanta coisa a descobrir no mundo de hoje. Tentar entender a confusão à minha volta e ainda me debater com esses problemas interiores. Se eu tivesse coragem iria a um médico. Coragem e dinheiro, ninguém suporta o que eles cobram. Além disso, faria tantos exames, mas tantos.
Caiu na mão de um, não se escapa mais. Jamais será o primeiro a encontrar o que tenho. Vou passar de especialista em especialista, deixarei todo meu sangue, fezes e urina nos laboratórios, serei sugado, esmagado, utilizado. E, depois, entrarei no fabuloso ciclo de farmácias.
Por isso a gente evita ir aos médicos. Se não encontram um mal definido, mandam a gente aos Psis. Ah, e aí, então, adeus mundo! Porque a função principal dos Psis é te convencer de que você não tem capacidade de cuidar da própria vida, portanto é louco. Sem contemplação, te atestam insanidade.
E loucos vão para o Isolamento dos Mentais. No momento em que o paciente entra, automaticamente os seus rendimentos são desviados para a tesouraria do Isolamento, a fim de pagar o tratamento. Não é à toa que existe nesta cidade uma intensa caça, comandada pelos Psis. Peritos, eles nos envolvem.
Se você localiza um deficiente mental e dá o sinal, os Psis mandam buscar. E há uma recompensa em cotas de água, ou outro privilégio qualquer. Entendem agora por que as pessoas andam na rua com passos comedidos, evitam falar com os outros, não fazem gestos bruscos, nem gritam?
Qualquer movimento suspeito, atitude fora do normal, pode indicar a existência de uma perturbação. E lá vem os Psis pra cima, babando como cachorro louco. É também por essa razão que a maioria prefere não sair de casa. Nunca se sabe. De repente, um espirro com som diferente, e adeus.
A minha vontade agora era sair correndo, gritando, pulando. De horror desse homem esfaqueado, largado em minha casa. Ah, Adelaide, você fez bem em sumir, não aguentaria tais cenas. Nem fomos feitos para suportá-las, mas temos de carregá-las, enfrentá-las, são o cotidiano, feijão com arroz.
Há quantos anos penso assim: este é o meu cotidiano, tenho de vivê-lo o melhor possível. Todo mundo pensa assim e, portanto, as coisas andam como andam. Imaginei, muito tempo atrás, que, se eu conseguisse estabelecer reformas dentro do grupo, seria possível uma revolução geral.
Cada um agindo no seu grupo. Então somaríamos tais reformas e teríamos uma modificação. Claro que haveria uma tendência geral, uma linha a seguir, que desse unidade a tais mudanças. Pensei, mas não fiz. Fiquei preocupado com a sobrevivência, manter minha família, a casa.
Lutei para pagar a casa, aceitei a troca pelo apartamento, briguei para arranjar emprego, aceitei o que me deram, apavorado com a perspectiva do não futuro. E foi exatamente ao não presente que cheguei. Olhando para trás, vejo que vivi dentro de um não passado. E a conclusão é simplesmente terrível.
Sim, porque um homem que atravessou um não passado e caiu dentro de um não presente, esse homem não existe. Que ideia mais engraçada e louca. Não existo. Aqui estou, posso me tocar, me pegar. Penso, reflito, concluo. Me vejo inteiro, mas não me reflito, não há imagem.
Então olha só que coisa mais maluca que me ocorre: porque consegui pensar, não existo, não sou. Não fui e não serei. E, no entanto, aqui estou. Só quero ver a cara do sabichão que se senta sempre à ponta da mesa, quando eu expuser esse raciocínio. O que ele vai dizer, comentar?
Na cozinha, deparo com os três tomando café com bolachas secas. As bolachas trincadas pelos dentes fazem um ruído uniforme, regular. É a única coisa que se ouve, além de água fervendo no fogo. Há um ovo na panela e fico assombrado. Um ovo. Mais fascinante que a descoberta do cadáver.
Ter um ovo boiando na panela fervente. Tais homens devem ser poderosos. Ou meu sobrinho tem mais poder do que eu penso, e não estou tirando proveito disso. Um magnífico ovo, de casca branca, rolando dentro da panela. Não me contenho, o espetáculo me hipnotiza. Nada mais simples que um ovo.
Nada mais impossível que ele. E, todavia, ali está, à minha frente, posso tocá-lo, sentir a sua quentura. É um grande conforto, uma sensação de segurança. O ovo me dá certeza, alguma coisa permanece. O ovo é uma verdade. Sinto que me reconquisto. Ao mesmo tempo, o ovo é um mistério, me dá prazer.
O que vocês fizeram? Tem um cadáver lá no quartinho!
Morreu um daqueles coitados?
Não, um de vocês matou o barbeiro lá de baixo.
Não sabia. O que você me conta é novidade. Vamos investigar.
Investigação das mais fáceis.
Assassinato é coisa séria. Pode ser que nenhum de nós tenha morto o homem. Quem garante que ele não caiu aí na porta e a gente recolheu? Aliás, foi isso o que aconteceu. Ele bateu à porta de madrugada, pedindo socorro. Estava todo ensanguentado. Recolhemos, ele morreu na cozinha, sem dizer o que tinha se passado.
Por que não me acordaram?
Para quê? Você ia salvar o homem?
Um homem morreu na minha casa e fiquei sabendo por acaso. E se eu não fosse ao quartinho? O cadáver ia apodrecer, empesteava toda a casa.
Deixa disso, ninguém morre por cheiro. Morresse, não tinha ninguém vivo na cidade, tinha?
Essa conversa é uma loucura. Tem um homem morto no quartinho. É disso que precisamos cuidar.
Vai ser cuidado. Tá tudo planejadinho.
Planejado? Quer dizer que existe uma operação que não sei o que é e inclui até assassinatos.
Calma, esfria essa cabeça. Hoje à noite tudo estará resolvido.
Como resolvido?
O ovo borbulha, o homem que está sempre comendo doces consulta o relógio. Parece que o ovo é dele, ao menos observa ansiosamente o cozimento. Ele cruza com meu olhar deslumbrado e não tem gesto de solidariedade. Nem sorriso, ou oferecimento, nem vontade de partilhar.
Enfim, o ovo é dele, faça o que quiser. Já vi tanta coisa que não posso ter, não vou me amargurar por mais uma, tão pequena. Azar. É que não me sai da cabeça o corpo do barbeiro. Minha obsessão tem um motivo que só agora realizo. A morte está muito perto, nós apenas tentamos sair dela.
Daí minha raiva contra o barbeiro e esses homens. Me devolvem uma ideia que recuso, combato, procuro esquecer. Acho que o processo da cabeça da gente num campo de batalha deve ser este: abstrair a possibilidade da morte, ainda que todo mundo caia em volta de nós. É o único modo de sobreviver.
Diante do cadáver, tenho de admitir: estou na lista. Posso ser o próximo. Quero me livrar do morto bem depressa. Eliminar uma situação que me dá consciência. Voltar ao meu isolamento quente e confortável. O problema é que não dá para estar só, existem os invasores. Não vou me livrar deles.
O pavor diante do homem morto, encerrado no quartinho de empregada, jogado no meio de feridos desmaiados, tudo vira minha cabeça. Gritar, me jogar contra a parede, deixar tudo. Que esses homens tomem conta, assumam a casa. Porcaria de casa que me alucina. Por que a defendo?
Sempre preso a alguma coisa, gente, objetos, pensamentos. Cheguei aonde cheguei junto com todo mundo. Vou atrás de Tadeu, ele tem a cabeça boa, me falou de um grupo, ou coisa semelhante. Quero ir, me afastar desses homens. Nem sei quem são, não me disseram. Também mal perguntei.
Tem um bom terraço lá em cima?
Tem.
Grande?
Ocupa toda a extensão do prédio.
Quer dar uma subida comigo?
Fazer o que no terraço?
Examinar. Saber se aguenta peso.
Não esperamos os elevadores, fomos subindo. Ele tem agilidade, vai de dois em dois degraus, pedi que me esperasse. Não estou a fim de arrebentar meu coração. As escadas são imundas, camadas pretas e oleosas empestam cada degrau. Escorregamos, a pasta se gruda aos sapatos.
Meu companheiro parece não sentir, não se incomoda com a sujeira, o cheiro. Subimos tateando, as luzes apagadas, nem trocam mais lâmpadas queimadas. As paredes ardem como brasa, o sol da manhã bate direto. Vai ser mais sufocante que ontem, pior que anteontem. Muito melhor que amanhã.
Suando, paramos no vigésimo nono, ouvindo barulhos familiares de pratos e panelas, o chiado do gás. Ao menos gás é coisa que não falta, produto reciclado do lixo. Sobra matéria-prima nesta cidade. Estrondos longínquos, como se fossem tiros de canhão, dinamite explodindo.
Não entendo essas explosões – disse ele.
Faz dias que vêm acontecendo.
E se fossem trovões?
Nova escalada, chegamos ao topo. A porta para o terraço está trancada, cadeado e fechadura enferrujados. Há anos as pessoas não devem subir aqui. Quando nos mudamos, Adelaide vinha, de vez em quando, e descobria moças tomando banho de sol. As moças mudaram ou envelheceram.
O homem que costuma se sentar à ponta da mesa tirou o revólver. Jamais imaginei que andasse armado. Dois tiros e o cadeado voou. Engraçado como estamos acostumados com toda sorte de barulhos. Os tiros soaram naturais, a porta estava emperrada, um pontapé. Ela se abriu como em filme.
Terraço imenso, me deu a impressão de um deserto, tal a quantidade de pó e areia trazidos pelo vento (tempos atrás), ou lentamente, através dos meses, anos. Cadeiras quebradas, um tampo de mesa, garrafas empilhadas. Tudo de plástico. Amontoados indefinidos, cobertos de terra.
Nossos pés mergulham fundo, o pó bate na canela, deixamos pegadas profundas à medida que caminhamos. Por um instante, um desses raros momentos, se fez um silêncio completo sobre a cidade. Nada mais que segundos. Que parecem, todavia, uma eternidade, de tal modo nos habituamos ao ensurdecedor.
Considero um mistério essas faixas de silêncio. Como se fossem combinadas, longamente ensaiadas, articuladas por um plano preciso, milimétrico. Cessa tudo. Vozes, passos, gritos de orgasmo, berros, batidas, explosões, tosses, pigarros, música, raspados, choques, apitos, murmúrios, gargalhadas.
Como se a própria vida humana tivesse deixado de existir. Cessasse. E flutuamos, soltos, do mesmo modo que os astronautas antigos, aqueles homens que na década de sessenta percorreram inutilmente o espaço. Semelhante aos dois que na Lua pisaram pó depositado por milênios.
Aqui, neste terraço, sinto a Lua, planeta a vagar, e eu, isolado da terra, do mundo, pronto para recomeçar. À minha frente o deserto, e daqui a pouco, do meio desta terra seca e calcinada que recobre o prédio, surgirão larvas, casulos, amebas, novas espécies, adaptadas ao sol, ao calor, à secura.
Deliro, certamente. Minha vista embaça, o sol me bate na cabeça, a camisa está empapada. Corro para me abrigar, há um pequeno telheiro com portas fechadas. O homem que parece o líder dos ocupantes percorre o terraço, batendo com o pé, examinando as bordas. O que pretende?
Ei, vamos descer, está quente demais – grito.
Já, já. Vi o que queria. Acho que vai dar certo.
O quê?
Aguenta. Vai ser uma operação rápida.
Para que me trouxe aqui em cima?
Para me acompanhar.
Só?
Para que mais? Você está ficando histérico dentro de casa. Precisa sair, tomar ar. Por que não vai para a cidade?
Fico mais abalado na cidade que em casa.
A casa não é mais casa, é uma prisão.
Gosto da minha casa, me sinto bem.
Alguém esqueceu as roupas no varal.
Havia calças, camisas, uma camisola, um pijama, meias, penduradas em cordas de náilon. A roupa estava esfarrapada, dura, pendia como estalactite. Alguém que deixou a secar e se foi rapidamente. Teria sido preso? Teria fugido correndo? Quem explica tais mistérios? Ou foi só esquecimento?
Toquei na camisola, nem dava para saber se era seda, náilon, algodão. Roupa fossilizada, imaginei. Há quantos anos estaria aqui, exposta ao tempo? O pano era quebradiço, se diluía como areia, manchava os dedos. O passado nos legou peixes, pássaros, animais fossilizados.
Árvores petrificadas, também. Por meio delas foi possível estudar a história, reconstituir as épocas. Nós estamos legando ao futuro bens de consumo fossilizados. Roupas, carros, aparelhos eletrônicos, e milhares de outros produtos, úteis e inúteis, que marcam esta civilização.
Nossa história se resume nesse varal. Toda a insanidade desta época vai poder ser estudada com o que restar em terraços, terrenos, caves dos metrôs, porões, apartamentos abandonados, supermercados em ruínas, templos vazios. Ah, se as lavadeiras antigas me vissem delirando.
Iam deixar dezenas de peças espalhadas pelos varais, a apodrecer, dizendo: vamos ajudar os moços, eles precisam da gente, senão a história se acaba. O que seria da história sem as lavadeiras do passado? Olha, passado mesmo, que lavadeira de tanque se acabou com minha avó.
Gosto deste terraço. Ao menos é um lugar vazio, dos poucos, ainda.
Meu companheiro contempla com olhar vago esse deserto particular. À nossa volta, observando os edifícios mais baixos, descortinamos outros desertos suspensos, semelhantes. Houve época em que os Civiltares lacraram o alto de todos os prédios por causa dos franco-atiradores.
Os topos ainda são áreas de segurança. Não é conveniente que alguém nos veja por aqui. Para onde quer que se olhe, o que se vê são superfícies empoeiradas, vazias. Se cair chuva, um dia, vai dar um lameiro pesado, pode ser que as lajes não suportem o peso. Imaginaram? Pantanais sobre os prédios.
Tudo tão igual. Por isso é que minha cabeça funde.
Igual a quê?
À terra de onde vim, as regiões por onde passei.
Eram assim?
Pior. Muito pior. Tenho tentado esquecer. Evito o assunto. Mas está na minha cabeça, não é coisa que se esqueça. Entende agora por que você não sabe muito de mim, de onde vim? Tentei apagar a memória, imbecil que sou. Apagar, quando devemos fazer o contrário, lembrar, conservar vivo o horror, para lutar contra ele.
Aí vem o falador, teorizando. Sei de tudo isso, ele não precisa me dar aulas. Tenho um pouco de ojeriza por esse homem, gostaria de descobrir por quê. O que existe nele que provoca alergia, comichão? Os outros dois quase não existem, circulam como se fossem invisíveis.
Este, não. Pode ser a segurança com que enfrenta situações. Talvez eu veja nele o idealizador da invasão de minha casa. O homem que ocupa os meus espaços privados e procura me provar que há um novo conceito de privacidade. Novo conceito? Que nada, é justificativa. Ele é um enrolador.
Desculpa para explicar a invasão de minha casa, de minha cabeça. Devemos repartir; mas por que apenas algumas classes? Por que não invadem as cúpulas geodésicas, não tomam os Círculos dos Ministros Embriagados, não conquistam as Áreas dos Milionários Adeptos da Energia Nuclear?
Está pior. Pior como?
Lá em cima, no Nordeste, nas zonas não tomadas pelas Reservas das Multinter, que era onde podíamos circular, tudo que se via era a terra calcinada, nenhuma vegetação, o chão juncado de esqueletos de animais, empoeirados, se desfazendo ao sol. Também nós quase nos desfazíamos, era só ficar algum tempo ao sol.
De rachar a cuca, como se dizia antigamente?
Rachava a cuca, moía os ossos, dissolvia a pele.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

Nenhum comentário:

Postar um comentário