segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Nunca é tarde para dançar

Fui visitar uma prima que mora em Maringá e na volta para São Paulo uma passageira, sentada ao meu lado, perguntou se eu era paranaense. Hoje em dia as pessoas têm medo de puxar conversa, ou não têm paciência para isso. Ou todo mundo desconfia de todo mundo. Vai ver que estamos perdendo um pouco da informalidade de que tanto nos orgulhamos. Desconfio que nós, brasileiros, estamos mais impacientes, carrancudos, indóceis.
Mas vamos ao voo e à passageira que me conquistou. Era uma mulher de uns oitenta anos, cujo rosto desconhecia a cirurgia plástica e o silicone. Tinha três filhos: dois homens e uma mulher.
Perguntei se ela morava em Maringá.
Moro, mas viajo uma vez por mês para São Paulo.”
Gosta de São Paulo?”
Adoro. São Paulo é uma cidade tão, tão…”
Procurou palavras para terminar a frase, hesitou, enfim disse:
São Paulo me liberta.”
É mesmo? O que a senhora quer dizer com isso?”
Sou viúva, meu filho mais velho mora em São Paulo, os outros, em Maringá. Se eu pudesse, também moraria em São Paulo. Porque gosto muito de dançar. Em Maringá é mais difícil. Não sabe como é uma cidade pequena? Vão me chamar de velha sirigaita, ou de viúva assanhada. Eu não ligo para nada disso, mas meus filhos, sim.”
Sentem ciúme da senhora?”
Sentem outra coisa. São crentes. Um é pastor, a outra virou carola, não sei de qual igreja, nem me interessa. Sei que os dois não dançam, não vão a festa nem ao cinema, não se divertem, vivem rezando, pregando: Jesus pra cá, o Senhor pra lá, aleluia e amém. Minha filha linda e vaidosa… Agora usa um vestido que cobre os joelhos, não depila as pernas, nem corta o cabelo. Era elegante como uma gazela, agora parece uma aranha. Fiz de tudo para que os dois voltassem a ser o que eram, mas parece que foram hipnotizados. Dão muita coisa do que ganham para a igreja. Eu não quero dinheiro, meu finado marido me deixou bem. Queria que me levassem para dançar, só isso. Mas não me acompanham, não. E eu fico mofando em casa, sonhando com a dança, esperando um telefonema…”
Parou de falar, olhou pela janelinha do avião e sorriu.
Não vejo a hora de pôr os pés no chão. Quando meu filho telefona para dizer que está me esperando, só falto pular de alegria. Mas disfarço, porque senão os dois carolas vão pensar mil coisas… Passo a semana arrumando a mala, escolhendo os vestidos, os sapatos. E quando chego em São Paulo, ainda ganho presentes do meu filho. Um amor de menino. É dono de uma fábrica de grinaldas e luvas. Sempre gostou disso: grinaldas, luvas, tiaras. É engraçado, um solteiro que ganha dinheiro vendendo acessórios para vestido de noiva. E ganha bem. Em maio, então, nem se fala. As noivas adoram esse mês. Em maio as noivas desabrocham. Chove casamento. É verdade. Nesse mês o meu menino trabalha doze horas por dia, não tem crise econômica coisa nenhuma. Com crise ou sem crise tem muita moça que quer casar de véu e grinalda e luva. Elas se preparam para o casamento, e eu, para o baile. Vou com meu filho. Como ele dança bem, o danado. Parece que está patinando no gelo. Quanta leveza, quanta agilidade. Como ele domina o ritmo. Mas eu sou melhor. Ele sabe disso. Todos os dançarinos do clube Homs e do Piratininga me conhecem. A viúva de Maringá. Os homens fazem fila para dançar comigo, e todos se cansam. Danço três, quatro horas, volto para casa às duas da manhã, espero meu filho dormir, depois coloco um disco com minhas músicas preferidas, me deito no sofá da sala e continuo a dançar, sonhando. Danço um sábado por mês e domingo volto para Maringá. Compro tecidos lindos na Vinte e Cinco de Março e minha costureira faz dois ou três vestidos para mim. Assim posso experimentar a roupa nova e dançar com a fotografia do meu marido. Na véspera da viagem escolho o vestido que vou usar no próximo baile. Já estamos descendo? Que maravilha. Meu filho está me esperando. Quer conhecer meu menino? Você dança?”
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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