terça-feira, 12 de novembro de 2019

Afiando o cálamo


Afiar o cálamo ou a ponta da haste da pena de ganso com que escreveria deve ter ajudado muito escritor a pensar na primeira frase. Não fazemos outra coisa senão repetir este ritual de preparação, ou protelação, da primeira frase, dando uma atenção neurótica aos nossos instrumentos. Há os que apontam todos os seus lápis antes de começar a escrever, mesmo que depois escrevam a tinta. Os que transformam o correto enchimento de uma caneta-tinteiro (lembra caneta-tinteiro?) numa provação litúrgica, para merecerem a inspiração. Outros arrumam e rearrumam sua mesa de trabalho, numa espécie de oferenda aos deuses da simetria, para que eles retribuam organizando seus pensamentos. Por uma boa primeira frase faz-se tudo, e sei de gente que só escreve depois de um banho purificador, ou depois de passar meia hora atirando uma bola contra uma parede, ou de encher folhas e folhas com arabescos. (Dizem que aproveitaram tudo do Profeta: seus textos no Corão e seus rabiscos na decoração dos templos.) Mas nada se compara ao lento desbastamento de um cálamo, para pensar na primeira frase. Deve ser por isso que antigamente escreviam tanto, e tão melhor: quando acabavam de afiar as penas com capricho, todo o livro já estava pensado e pronto, s ó bastava botá-lo no papel. E como está provado que antigamente o tempo passava mais devagar, tudo se explica, ou tudo nos explica.
Não existe equivalente a afiar o cálamo para quem escreve num computador — salvo desmontar e remontar o aparelho, o que nenhum escritor sabe fazer. Ficamos reduzidos a manobras diversionistas: qualquer coisa para não enfrentar a primeira frase. Gostei de saber que o Chico Buarque também fica jogando paciência em vez de trabalhar. Nossa desculpa é que não estamos jogando, estamos distraindo a nossa atenção enquanto pensamos. Para evitar a primeira frase tenho me concentrado nos ícones do computador e agora mesmo — toda esta crônica, como já se percebeu, é um pretexto para não escrevê-la — me dei conta de que o símbolo para tempo no computador é uma ampulheta. Não a face de um relógio ou um quartzo pulsante, uma ampulheta! Quantas dessas crianças que já nascem com um notebook embaixo do braço sabem o que é uma ampulheta? E no entanto ali está ela, a única maneira que o computador encontrou de nos dizer para esperar um pouquinho. Um anacronismo desconcertante. Eram ampulhetas que os escritores de antigamente tinham ao seu lado, para lembrá-los dos prazos de entrega enquanto afiavam o cálamo. No fundo, mudou tudo no nosso ofício menos a angústia.
Pronto. Agora só me falta uma boa última frase.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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