terça-feira, 12 de novembro de 2019

A morte e a morte de Quincas Berro D’Água - V

O conselho de família não durou muito tempo. Discutiam na mesa de um restaurante na Baixa dos Sapateiros. Pela rua movimentada passava a multidão, álacre e apressada. Bem em frente, um cinema. O cadáver ficara entregue aos cuidados de uma empresa funerária, propriedade de um amigo do tio Eduardo. Vinte por cento de abatimento. Tio Eduardo explicava:
Caro mesmo é o caixão. E os automóveis, se for acompanhamento grande. Uma fortuna. Hoje não se pode nem morrer.
Ali por perto haviam comprado uma roupa nova, preta (a fazenda não era grande coisa, mas, como dizia Eduardo, para ser comida pelos vermes estava até boa demais), um par de sapatos também pretos, camisa branca, gravata, par de meias. Cuecas não eram necessárias. Eduardo anotava num caderninho cada despesa feita. Mestre na economia, seu armazém prosperava.
Nas mãos hábeis dos especialistas da agência funerária, Quincas Berro Dágua ia voltando a ser Joaquim Soares da Cunha, enquanto os parentes comiam peixada no restaurante e discutiam sobre o enterro. Discussão mesmo só houve em torno de um detalhe: de onde sair o caixão.
Vanda pensara levar o cadáver para casa, realizar o velório na sala, oferecendo café, licor e bolinhos aos presentes, durante a noite. Chamar padre Roque para a encomendação do corpo. Realizar o enterro pela manhã cedo, de tal maneira que pudesse vir muita gente, colegas de Repartição, velhos conhecidos, amigos da família. Leonardo opusera-se. Para que levar o defunto para casa? Para que convidar vizinhos e amigos, incomodar um bocado de gente? Só para que todos eles ficassem recordando as loucuras do finado, sua vida inconfessável dos últimos anos, para expor a vergonha da família ante todo mundo? Como sucedera naquela manhã na Repartição. Não se havia falado noutra coisa. Cada um sabia uma história de Quincas e a contava entre gargalhadas. Ele próprio, Leonardo, nunca imaginara que o sogro houvesse feito tantas e tais. Cada uma de arrepiar... Sem levar em conta que muitas daquelas pessoas acreditavam Quincas morto e enterrado ou bem vivendo no interior do Estado. E as crianças? Veneravam a memória de um avô exemplar, descansando na santa paz de Deus, e, de repente, chegariam os pais com o cadáver de um vagabundo debaixo do braço, atiravam com ele no nariz dos inocentes. Sem falar na trabalheira que iam ter, na despesa a aumentar, como se já não bastasse a do enterro, da roupa nova, do par de sapatos. Ele, Leonardo, estava necessitando de um par de sapatos, no entanto mandara botar meia-sola nuns velhíssimos para economizar. Agora, com aquele desparrame de dinheiro, quando poderia pensar em sapatos novos?
Tia Marocas, gordíssima, adorando a peixada do restaurante, era da mesma opinião:
O melhor é espalhar que ele morreu no interior, que chegou um telegrama. Depois a gente convida para a missa de sétimo dia. Vai quem quiser, a gente não é obrigada a dar condução.
Vanda suspendeu o garfo:
Apesar dos pesares, é meu pai. Não quero que seja enterrado como um vagabundo. Se fosse seu pai, Leonardo, você gostava?
Tio Eduardo era pouco sentimental:
E o que ele era senão um vagabundo? E dos piores da Bahia. Nem por ser meu irmão posso negar...
Tia Marocas arrotou, o bucho farto, o coração também:
Coitado do Joaquim... Tinha bom gênio. Não fazia nada por mal. Gostava dessa vida, é o destino de cada um. Desde menino era assim. Uma vez, tu lembra, Eduardo?... quis fugir com um circo. Levou uma surra de arrancar o pêlo – bateu na coxa de Vanda a seu lado, como a desculpar-se. – E tua mãe, minha querida, era um bocado mandona. Um dia ele arribou. Me disse que queria ser livre como um passarinho. A verdade é que ele tinha graça. Ninguém achou graça. Vanda fechara o rosto, obstinava-se:
Não estou defendendo ele. Muito nos fez sofrer, a mim e a minha mãe, que era mulher de bem. E a Leonardo. Mas nem por isso quero que seja enterrado como um cão sem dono. O que é que iriam dizer quando soubessem? Antes de dar pra doido, era pessoa considerada. Deve ser enterrado direito.
Leonardo olhou-a suplicante. Sabia não adiantar discutir com Vanda, ela acabava sempre por impor suas opiniões e seus desejos. Também fora assim no tempo de Joaquim e Otacília, apenas um dia Joaquim largou tudo e ganhou o mundo. Que jeito, senão arrastar com o cadáver para casa, sair avisando conhecidos e amigos, convocar gente por telefone, passar a noite acordado, ouvindo contar coisas de Quincas, os risos em surdina, as piscadelas de olho, tudo isso durando até a saída do enterro? Aquele sogro amargurara-lhe a vida, dera-lhe os maiores desgostos. Leonardo vivia no receio de mais uma das dele, de abrir o jornal e deparar com a notícia de sua prisão por vagabundagem, como sucedera uma vez. Nem queria se recordar daquele dia quando, a instâncias de Vanda, andou pela polícia, mandado de um lado para outro, até encontrar Quincas no porão da Central, de cuecas e descalço, a jogar tranquilamente com ladrões e vigaristas. E depois de tudo isso, quando pensava finalmente respirar, ainda tinha de suportar aquele cadáver todo um dia e uma noite, e em sua casa... Mas Eduardo tampouco estava de acordo e era uma opinião de peso, já que o comerciante concordara em dividir as despesas do enterro:
Tudo isso está muito bem, Vanda. Que ele seja enterrado como um cristão. Com padre, de roupa nova, coroa de flores. Não merecia nada disso, mas, afinal, é teu pai e meu irmão. Tudo isso está bem. Mas por que meter o defunto em casa...
Por quê? – repetiu Leonardo num eco.
...incomodar meio mundo, ter de alugar seis ou oito automóveis para o acompanhamento? Sabe quanto custa cada um? E o transporte do cadáver do Tabuão para Itapagipe? Uma fortuna. Por que o enterro não sai daqui mesmo? Vamos nós de acompanhamento. Basta um carro. Depois, se vocês fizerem questão, a gente convida para a missa de sétimo dia.
Comunica que ele morreu no interior – tia Marocas não abandonava sua proposta.
Pode ser. Por que não?
E quem vela o corpo?
A gente mesmo. Pra que mais?
Vanda terminou cedendo. Em verdade – pensou –, a ideia de levar o cadáver para casa era um exagero. Só ia dar trabalho, despesa e aborrecimento. O melhor era enterrar Quincas o mais discretamente possível, comunicar depois o fato aos amigos, convidá-los para a missa de sétimo dia. Assim ficou acertado. Pediram a sobremesa. Um alto-falante berrava próximo as excelências do plano de vendas de uma companhia imobiliária.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D’Água

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