segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Um grande amor

Fotograma do filme King Kong, de 1933

Lembra o King Kong? Uma das grandes histórias de amor do nosso tempo. King Kong, o gorila gigantesco, amava Fay Wray como poucas vezes uma mulher foi amada por homem ou besta. No fim do filme, agarrado ao topo do edifício Empire State, com Fay numa das mãos, metralhado por aviões de guerra, o grande gorila tem um último gesto antes de cair para a morte. Coloca a sua amada carinhosamente num parapeito, a salvo das balas. E cai.
Mas e se King Kong não tivesse morrido? Se apenas se ferisse na queda e fosse levado, com guindastes, para um hospital? Ocupando 117 camas, com um carro-pipa de soro ligado à sua veia por mangueiras que transpõem janelas, quebrando termômetros especiais do tamanho de mastros e esmagando enfermeiras distraídas nas suas axilas peludas, King Kong recebe a visita emocionada de Fay Wray. Ela lhe traz um carregamento de bananas e uma banca de revistas, e quase chora ao percorrer os 50 metros de gesso da sua perna. King Kong emociona-se também e não pode conter uma lágrima que cai sobre Fay e quase a afoga. Minutos depois, já restabelecida, Fay jura que vai esperar o macaco na sua saída do hospital. Que juntos construirão uma vida nova.
Combinam que King não voltará a ser exibido como um monstro. Fay tem algumas economias e sustentará o casal até que ele consiga um emprego decente. Algo em comunicações ou vendas. Casarão no religioso, embora Fay preveja alguma resistência de parte dos seus pais.
Eles são muito católicos e você nem foi batizado.”
Kong dá boas risadas, fazendo tremer o edifício e interrompendo uma cirurgia no andar superior. Fay olha fundo nos olhos de Kong. Olha fundo num olho e depois corre para olhar fundo no outro. Mas o tempo passa.
Passa o tempo, e o tempo é o segundo maior inimigo do amor, depois da asma de fundo alérgico. Fay, aconselhada por amigos, não espera Kong na saída do hospital. Manda um bilhete lacônico dizendo que precisa reorganizar a sua vida e pensar em todas as implicações daquele caso, mas não vê razão para não continuarem bons amigos e que ele não deixe de telefonar de vez em quando.
Kong, frustrado, amassa um táxi com o punho. É preso por um batalhão da Guarda Nacional, mas Fay lhe consegue um bom advogado. Ela, no entanto, não aparece.
Kong telefona para Fay, mas não diz nada. Pela sua respiração ao telefone — parece um motor de caminhão com problema nas velas —, ela adivinha que é ele.
Kong tenta passar pela frente da casa de Fay sem ser percebido. Pisa numa árvore milenar e cai sobre duas garagens.
Kong se esconde atrás de um edifício para ver Fay sair do trabalho, mas desloca um fio de alta-tensão com o joelho e causa um incêndio de vários quarteirões.
Kong começa a beber. Invade uma fábrica de cerveja e bebe a produção de um mês em um gole. Com uma mão sustentando a cabeça e o cotovelo apoiado no telhado de um bar, o grande macaco canta velhas canções da sua raça, lamentações pelo amor perdido e a inconstância da fêmea.
Completamente bêbado, dorme embaixo de uma ponte e derruba a ponte com o seu sono agitado de amante ferido.
O prefeito reúne-se com Fay e sua família. A mãe de Fay está inconsolável. Fay sempre despertou grandes paixões nos meninos, desde pequena, mas aquilo é ridículo. E por que não podia ser um rapaz da redondeza, ou um médico, de preferência branco? Mas esta juventude de hoje em dia... O pai de Fay resmunga que a única solução para o caso é chamar os aviões de guerra outra vez. Fay protesta, e o prefeito explica que qualquer ação mais radical contra Kong pode afetar as relações exteriores dos Estados Unidos, especialmente com as novas nações africanas. Para o bem da comunidade, Fay precisa corresponder ao amor da fera. O problema não é mais apenas municipal. Diversos condados vizinhos queixam-se das canções noturnas de péssimo gosto e pior entonação do grande macaco. Nos confins do estado, velhas solteironas perdem o sono e o equilíbrio emocional com as lamentações do bêbado. O amor sem esperança é uma calamidade pública.
Se pelo menos ele fosse mais discreto...”, diz o prefeito, que pede para Fay reconsiderar.
Fay não encontra forças no seu coração.
Não posso, não posso. Pensem só: que vida social nós poderíamos ter?”
Finalmente, o próprio Kong apressa sua ruína. Procura uma conselheira sentimental sobre o seu caso. Enfia a mão pela janela, pega a conselheira e a leva para o mato, para uma consulta. A pobre mulher é encontrada desfalecida de susto, no dia seguinte. Aproveitando-se de outra bebedeira de Kong que — descendo mais um degrau na sua degradação — agora só ataca fábricas de vinho barato, as autoridades o capturam e o deportam para a sua ilha de origem, apesar dos protestos de algumas organizações de esquerda.
Na sua ilha solitária, Kong passará o resto dos seus dias (300 anos), rugindo de saudade. De vez em quando pegará um avião no ar e o sacudirá na palma da mão, na esperança de que Fay lhe caia outra vez entre os dedos. Pois terrível é o amor, e assim tem sido desde o princípio.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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