Fotograma do filme King Kong, de 1933
Lembra
o King Kong? Uma das grandes histórias de amor do nosso
tempo. King Kong, o gorila gigantesco, amava Fay Wray como poucas
vezes uma mulher foi amada por homem ou besta. No fim do filme,
agarrado ao topo do edifício Empire State, com Fay numa das mãos,
metralhado por aviões de guerra, o grande gorila tem um último
gesto antes de cair para a morte. Coloca a sua amada carinhosamente
num parapeito, a salvo das balas. E cai.
Mas
e se King Kong não tivesse morrido? Se apenas se ferisse na queda e
fosse levado, com guindastes, para um hospital? Ocupando 117 camas,
com um carro-pipa de soro ligado à sua veia por mangueiras que
transpõem janelas, quebrando termômetros especiais do tamanho de
mastros e esmagando enfermeiras distraídas nas suas axilas peludas,
King Kong recebe a visita emocionada de Fay Wray. Ela lhe traz um
carregamento de bananas e uma banca de revistas, e quase chora ao
percorrer os 50 metros de gesso da sua perna. King Kong emociona-se
também e não pode conter uma lágrima que cai sobre Fay e quase a
afoga. Minutos depois, já restabelecida, Fay jura que vai esperar o
macaco na sua saída do hospital. Que juntos construirão uma vida
nova.
Combinam
que King não voltará a ser exibido como um monstro. Fay tem algumas
economias e sustentará o casal até que ele consiga um emprego
decente. Algo em comunicações ou vendas. Casarão no religioso,
embora Fay preveja alguma resistência de parte dos seus pais.
“Eles
são muito católicos e você nem foi batizado.”
Kong
dá boas risadas, fazendo tremer o edifício e interrompendo uma
cirurgia no andar superior. Fay olha fundo nos olhos de Kong. Olha
fundo num olho e depois corre para olhar fundo no outro. Mas o tempo
passa.
Passa
o tempo, e o tempo é o segundo maior inimigo do amor, depois da asma
de fundo alérgico. Fay, aconselhada por amigos, não espera Kong na
saída do hospital. Manda um bilhete lacônico dizendo que precisa
reorganizar a sua vida e pensar em todas as implicações daquele
caso, mas não vê razão para não continuarem bons amigos e que ele
não deixe de telefonar de vez em quando.
Kong,
frustrado, amassa um táxi com o punho. É preso por um batalhão da
Guarda Nacional, mas Fay lhe consegue um bom advogado. Ela, no
entanto, não aparece.
Kong
telefona para Fay, mas não diz nada. Pela sua respiração ao
telefone — parece um motor de caminhão com problema nas velas —,
ela adivinha que é ele.
Kong
tenta passar pela frente da casa de Fay sem ser percebido. Pisa numa
árvore milenar e cai sobre duas garagens.
Kong
se esconde atrás de um edifício para ver Fay sair do trabalho, mas
desloca um fio de alta-tensão com o joelho e causa um incêndio de
vários quarteirões.
Kong
começa a beber. Invade uma fábrica de cerveja e bebe a produção
de um mês em um gole. Com uma mão sustentando a cabeça e o
cotovelo apoiado no telhado de um bar, o grande macaco canta velhas
canções da sua raça, lamentações pelo amor perdido e a
inconstância da fêmea.
Completamente
bêbado, dorme embaixo de uma ponte e derruba a ponte com o seu sono
agitado de amante ferido.
O
prefeito reúne-se com Fay e sua família. A mãe de Fay está
inconsolável. Fay sempre despertou grandes paixões nos meninos,
desde pequena, mas aquilo é ridículo. E por que não podia ser um
rapaz da redondeza, ou um médico, de preferência branco? Mas esta
juventude de hoje em dia... O pai de Fay resmunga que a única
solução para o caso é chamar os aviões de guerra outra vez. Fay
protesta, e o prefeito explica que qualquer ação mais radical
contra Kong pode afetar as relações exteriores dos Estados Unidos,
especialmente com as novas nações africanas. Para o bem da
comunidade, Fay precisa corresponder ao amor da fera. O problema não
é mais apenas municipal. Diversos condados vizinhos queixam-se das
canções noturnas de péssimo gosto e pior entonação do grande
macaco. Nos confins do estado, velhas solteironas perdem o sono e o
equilíbrio emocional com as lamentações do bêbado. O amor sem
esperança é uma calamidade pública.
“Se
pelo menos ele fosse mais discreto...”, diz o prefeito, que pede
para Fay reconsiderar.
Fay
não encontra forças no seu coração.
“Não
posso, não posso. Pensem só: que vida social nós poderíamos ter?”
Finalmente,
o próprio Kong apressa sua ruína. Procura uma conselheira
sentimental sobre o seu caso. Enfia a mão pela janela, pega a
conselheira e a leva para o mato, para uma consulta. A pobre mulher é
encontrada desfalecida de susto, no dia seguinte. Aproveitando-se de
outra bebedeira de Kong que — descendo mais um degrau na sua
degradação — agora só ataca fábricas de vinho barato, as
autoridades o capturam e o deportam para a sua ilha de origem, apesar
dos protestos de algumas organizações de esquerda.
Na
sua ilha solitária, Kong passará o resto dos seus dias (300 anos),
rugindo de saudade. De vez em quando pegará um avião no ar e o
sacudirá na palma da mão, na esperança de que Fay lhe caia outra
vez entre os dedos. Pois terrível é o amor, e assim tem sido desde
o princípio.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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