– No
mundo da lua, Souza?
A
barbearia vazia, o barbeiro encostado na porta. A essa hora da tarde
não tem nunca freguês. A vitrolinha num canto toca tangos. Desde
que me mudei para cá, o barbeiro ouve tangos e boleros sem parar.
Pilhas de antiguíssimos discos chiantes, LPs e CDs arcaicos,
compactos, todos amontoados, empoeirados.
– Acho
que o senhor precisa de uma barba. Não quer entrar?
Passo
a mão pelo rosto, meu Deus, há quantos dias não me barbeio? Se
Adelaide me visse, teria um colapso. Onde estará? Não telefonei
para a casa dos pais. Viajou ou me abandonou? Pode ser. Por que não
li o bilhete? Estranho a mim mesmo, nunca tive atitudes assim.
Afinal, ela não tem culpa.
– O
senhor usa água? Ou mijo retificado?
– Acha
que ia pôr mijo retificado no seu rosto, Souza? Me conhece!
– Não,
não conheço ninguém.
Ventiladores
de pá, desses de velhos filmes americanos passados no Caribe, giram
inutilmente. Não há ar para agitar. A barbearia é abafada. O
corredor é suportável, ainda que o chão esteja preto. Ninguém
vence a poeira cinza, constante. Hoje amanheceu sem neblina, céu
limpo, sol tenebroso.
– Vou
pôr uma toalha fresquinha.
– Ei,
quanto vai me custar?
– Estava
pensando, seu Souza. O senhor tem um sobrinho que é capitão. Não
tem?
– Tenho.
– Pois
eu soube aqui no prédio que ele facilita coisas.
– Que
coisas?
– Alguém
daqui, não vou dizer quem, já comprou fichas para água.
– Não
sei de nada disso. E não gostaria de tocar no assunto com ele.
– O
senhor não precisa tocar. Apenas diga que o barbeiro quer bater um
papinho. Ele vem até aqui.
– O
senhor tem certeza?
– Absoluta.
O meu negócio vai interessar ao seu sobrinho.
– Bem,
não sei quando vou encontrá-lo. Ele só aparece de vez em quando.
– Está
lá em cima. Passou por aqui faz meia hora.
Lá
estava ele. Sorridente, meloso, olhos matreiros, bigode negro,
semelhante a um cantor de boleros. Tomava uma lata de cerveja. Me
abraçou, assim que entrei. Tem pessoas de quem a gente não gosta
sem saber por quê. Vê, e não gosta. Nunca fizeram nada para a
gente. Mas é uma antipatia espontânea.
– Senta
aí, tio. Vim te propor um negócio. Sei que vai dizer não, de cara!
Mas ouça primeiro. É uma caridade que precisamos fazer.
– Caridade?
Você?
– Tio?
Não sou tão ruim assim! Só porque o senhor odeia o Novo Exército,
não precisa me incluir.
– Até
que não tenho queixas do Novo Exército. Mas essa Organização que
vocês mantêm, os Civiltares, não dá para engolir.
– Para
lá, tio. Não temos nada a ver com os Civiltares.
– Quer
me enganar?
– Tio,
os Civiltares foram formados pela ala dura, que não concordou com as
renovações efetuadas no Exército. Essa ala uniu-se aos civis
radicais, que não concordavam com as aberturas do Esquema. Então
formaram sua própria organização.
– Que
o Esquema tolera.
– Política
não é fácil, tio. É um jogo. O Esquema tem procurado minar as
bases dos Civiltares. Demora. A tolerância se dá porque existem
grupos muito fortes a apoiar os Civiltares. Eles formam também a
milícia de confiança das Reservas Estrangeiras. O Esquema vem
tentando conquistar as lideranças para destruir a organização.
– Teoria!
Na prática, o que acontece?
– Olha
aqui, tio. Não vim discutir política. Tenho pressa. Preciso de um
favor.
– Pode
ser que eu faça.
– Não
queria dizer isto, tio. Mas, quando o senhor precisa de fichas, eu
trago. Sempre trago, nunca falei nada.
– Para
poder cobrar, agora.
– Cospe
no copo de água que te dei, cospe.
Fomos
até a cozinha. Havia três pessoas sentadas, a tomar cerveja. A mesa
cheia de latarias, pacotes, sacos de supermercados. Homens na casa
dos trinta. Não posso dizer se morenos, porque eram carecas. Nem um
pelo. Nada de cabelo, sobrancelha. Desses que a cada dia aumentam nas
ruas.
– Preciso
que fiquem por aqui, tio. O senhor acha que a tia se incomoda?
– Ela
não está. Vai ficar fora algum tempo.
– É
só por uns dias. Trouxemos comida, depois vem mais. Eles estão com
fichas de água. O senhor não vai gastar nada, nada.
– A
gente se ajeita, pode deixar. Ah, o barbeiro lá de baixo quer falar
contigo. Tem um negócio a propor.
As
janelas fechadas, insetos zumbem. Olho o forro, manchas marrons. Os
bichinhos vivem juntos, em grupos. Trago a lata de DDT, pulverizo.
Eles permanecem no lugar, tenho a impressão de que contentes com o
banho fresco com que os presenteei. Pulverizo outra vez, e nada.
Continuam indiferentes.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país
nenhum
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