quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Sempre esteve claro que o sobrinho nunca forneceu fichas apenas pelos belos olhos do tio que o ajudou a criar. Chegou a hora de devolver os favores

No mundo da lua, Souza?
A barbearia vazia, o barbeiro encostado na porta. A essa hora da tarde não tem nunca freguês. A vitrolinha num canto toca tangos. Desde que me mudei para cá, o barbeiro ouve tangos e boleros sem parar. Pilhas de antiguíssimos discos chiantes, LPs e CDs arcaicos, compactos, todos amontoados, empoeirados.
Acho que o senhor precisa de uma barba. Não quer entrar?
Passo a mão pelo rosto, meu Deus, há quantos dias não me barbeio? Se Adelaide me visse, teria um colapso. Onde estará? Não telefonei para a casa dos pais. Viajou ou me abandonou? Pode ser. Por que não li o bilhete? Estranho a mim mesmo, nunca tive atitudes assim. Afinal, ela não tem culpa.
O senhor usa água? Ou mijo retificado?
Acha que ia pôr mijo retificado no seu rosto, Souza? Me conhece!
Não, não conheço ninguém.
Ventiladores de pá, desses de velhos filmes americanos passados no Caribe, giram inutilmente. Não há ar para agitar. A barbearia é abafada. O corredor é suportável, ainda que o chão esteja preto. Ninguém vence a poeira cinza, constante. Hoje amanheceu sem neblina, céu limpo, sol tenebroso.
Vou pôr uma toalha fresquinha.
Ei, quanto vai me custar?
Estava pensando, seu Souza. O senhor tem um sobrinho que é capitão. Não tem?
Tenho.
Pois eu soube aqui no prédio que ele facilita coisas.
Que coisas?
Alguém daqui, não vou dizer quem, já comprou fichas para água.
Não sei de nada disso. E não gostaria de tocar no assunto com ele.
O senhor não precisa tocar. Apenas diga que o barbeiro quer bater um papinho. Ele vem até aqui.
O senhor tem certeza?
Absoluta. O meu negócio vai interessar ao seu sobrinho.
Bem, não sei quando vou encontrá-lo. Ele só aparece de vez em quando.
Está lá em cima. Passou por aqui faz meia hora.
Lá estava ele. Sorridente, meloso, olhos matreiros, bigode negro, semelhante a um cantor de boleros. Tomava uma lata de cerveja. Me abraçou, assim que entrei. Tem pessoas de quem a gente não gosta sem saber por quê. Vê, e não gosta. Nunca fizeram nada para a gente. Mas é uma antipatia espontânea.
Senta aí, tio. Vim te propor um negócio. Sei que vai dizer não, de cara! Mas ouça primeiro. É uma caridade que precisamos fazer.
Caridade? Você?
Tio? Não sou tão ruim assim! Só porque o senhor odeia o Novo Exército, não precisa me incluir.
Até que não tenho queixas do Novo Exército. Mas essa Organização que vocês mantêm, os Civiltares, não dá para engolir.
Para lá, tio. Não temos nada a ver com os Civiltares.
Quer me enganar?
Tio, os Civiltares foram formados pela ala dura, que não concordou com as renovações efetuadas no Exército. Essa ala uniu-se aos civis radicais, que não concordavam com as aberturas do Esquema. Então formaram sua própria organização.
Que o Esquema tolera.
Política não é fácil, tio. É um jogo. O Esquema tem procurado minar as bases dos Civiltares. Demora. A tolerância se dá porque existem grupos muito fortes a apoiar os Civiltares. Eles formam também a milícia de confiança das Reservas Estrangeiras. O Esquema vem tentando conquistar as lideranças para destruir a organização.
Teoria! Na prática, o que acontece?
Olha aqui, tio. Não vim discutir política. Tenho pressa. Preciso de um favor.
Pode ser que eu faça.
Não queria dizer isto, tio. Mas, quando o senhor precisa de fichas, eu trago. Sempre trago, nunca falei nada.
Para poder cobrar, agora.
Cospe no copo de água que te dei, cospe.
Fomos até a cozinha. Havia três pessoas sentadas, a tomar cerveja. A mesa cheia de latarias, pacotes, sacos de supermercados. Homens na casa dos trinta. Não posso dizer se morenos, porque eram carecas. Nem um pelo. Nada de cabelo, sobrancelha. Desses que a cada dia aumentam nas ruas.
Preciso que fiquem por aqui, tio. O senhor acha que a tia se incomoda?
Ela não está. Vai ficar fora algum tempo.
É só por uns dias. Trouxemos comida, depois vem mais. Eles estão com fichas de água. O senhor não vai gastar nada, nada.
A gente se ajeita, pode deixar. Ah, o barbeiro lá de baixo quer falar contigo. Tem um negócio a propor.
As janelas fechadas, insetos zumbem. Olho o forro, manchas marrons. Os bichinhos vivem juntos, em grupos. Trago a lata de DDT, pulverizo. Eles permanecem no lugar, tenho a impressão de que contentes com o banho fresco com que os presenteei. Pulverizo outra vez, e nada. Continuam indiferentes.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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