quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Mistérios de Luanda

Pequeno Soba divertia-se a conversar com os vendedores de artesanato. Perdia-se nas ruelas poeirentas, entre as barracas de madeira, estudando os panos do Congo, as mil e uma telas de poentes e batucadas, as máscaras tchokwé que os artesãos enterram, durante os meses de chuva, para parecerem antigas. Acontecia-lhe comprar um ou outro artigo de que não gostava apenas para prolongar a conversa. Movido mais por espírito de solidariedade do que a pensar no lucro, criara uma empresa de produção e comercialização de artesanato. Ele mesmo imaginava e desenhava peças em pau preto, que depois os artesãos se encarregavam de replicar. Vendia as peças no aeroporto de Luanda e em pequenas lojas dedicadas ao chamado comércio justo, em Paris, Londres e Nova Iorque. Dava emprego a mais de duas dezenas de artesãos. Uma das peças de maior sucesso representava um Pensador, a popular figurinha da estatuária tradicional angolana, com uma mordaça a tapar-lhe a boca. O povo dera a essa peça o nome de Nem-Penses.
Naquela tarde, Pequeno Soba atravessou o mercado sem prestar muita atenção aos vendedores. Limitou-se a sorrir, acenando com a cabeça, àqueles que o saudavam. Papy Bolingô começara o espetáculo. Fofo cantava um velho tema da Orchestra Baobab. O bar estava cheio. Ao vê-lo chegar um empregado aproximou-se com uma cadeira desdobrável. Montou a cadeira e o empresário sentou-se. As pessoas riam, fascinadas, enquanto Fofo se movia acompanhando o ritmo, abrindo e fechando a enorme boca.
Pequeno Soba assistira muitas vezes ao espetáculo. Sabia que Papy Bolingô trabalhara num circo, em França, durante os anos de exílio. Fora naquela época, certamente, que descobrira e desenvolvera os extraordinários dotes de ventríloquo com que agora ganhava a vida. O antigo sonoplasta insistia, mesmo em privado, na autenticidade do espetáculo:
Fofo fala! – Teimava, entre gargalhadas. – Fofo canta. Não sou eu. Ensinei-lhe as primeiras palavras, era ele muito pequeno. A seguir ensinei-o a cantar.
Então queremos ouvi-lo a cantar longe de você!
Nada! Isso o gajo não faz. É um bicho tímido.
Pequeno Soba esperou até ao final do espetáculo. As pessoas foram saindo, animadíssimas, arrebatadas pelo milagre a que acabavam de assistir. O empresário acercou-se dos artistas:
Parabéns! Estão cada vez melhor.
Obrigado, agradeceu o hipopótamo, com a sua voz metálica de barítono dramático: Tivemos um público generoso.
Pequeno Soba acariciou-lhe o dorso:
Estás a dar-te bem, lá na tua chitaca? Muito bem, padrinho.
Tenho bué de água, lama para rebolar.
Papy Bolingô explodiu numa clara gargalhada. O amigo riu com ele. Fofo pareceu imitá-los, sacudindo a cabeça, batendo com as grossas patas no pequeno palco.
O proprietário do estabelecimento, um antigo guerrilheiro chamado Pedro Afonso, perdera a perna direita na explosão de uma mina. Isso não lhe roubara a paixão pela dança. Vendo-o bailar ninguém suspeitava que usasse uma prótese. Aproximou-se, ao escutar as gargalhadas dos dois amigos, enquanto desenhava no chão de terra batida uns rendilhados passos de rumba:
Deus inventou a música para que os pobres pudessem ser felizes.
Mandou vir cervejas para os três:
Vamos beber à felicidade dos pobres.
Pequeno Soba protestou: E eu?
Você?! Ah, ah, sempre me esqueço que você é rico. Aqui no nosso país, o primeiro sinal exterior de riqueza costuma ser a arrogância. Você não tem nada de arrogante. O dinheiro não lhe subiu a cabeça.
Obrigado. Sabe como fiquei rico?
Dizem que um pássaro desceu do céu, pousou na sua mão e cuspiu dois diamantes.
Foi quase assim. Matei um pombo, para o comer, e encontrei dois diamantes dentro do papo do bicho. Há poucos dias descobri de quem eram os diamantes. Pequeno Soba ficou um momento em silêncio, fruindo o espanto dos amigos: Os diamantes eram da minha vizinha, uma velha senhora portuguesa. Ela viveu vinte e tal anos na pobreza, sendo rica. E me fez rico, a mim, ignorando tal.
Contou a história, demorando-se nos pormenores, nas voltas e reviravoltas, inventando com talento e gosto o muito que desconhecia. Papy Bolingô quis saber se a velha ficara com alguns diamantes. Sim, confirmou o empresário. Haviam sobrado dois, tão grandes que nenhum pombo os quisera. A portuguesa oferecera-os a dois pastores mucubais. Ao que parece conhecia os matuenses, vá-se lá saber como. Luanda tem mistérios.
Verdade, concordou Pedro Afonso: Nossa capital está cheia de mistérios. Tenho visto nesta cidade o que não cabe nos sonhos.
José Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento

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