Paulo
Honório, concebido em 1924, nasceu em 1932. Narro essa longa
gestação, por exigência de Condé, homem terrível e absurdo, que
guarda fotografias e papéis inéditos de todo o gênero, da novela
ao rol de roupa suja, do poema à carta de cobrança, autos de
processo e correspondência amorosa, coisas obtidas pelos mais
diversos meios: sorrisos, pagamento do café, do ônibus e do bonde,
ameaças, gritos, carinhos, promessas, injúrias, cócegas,
apresentação a cavalheiros ponderosos e chantagens, pois o monstro
conhece fidalgos estrangeiros e funcionários da polícia. Para me
extorquir estas declarações, Condé me ofereceu, antes de tudo, a
glória. Como a sua coleção durará séculos, posso ter a certeza
de que, senão a obra inteira, pelo menos uma das minhas personagens
tomará pé no futuro. Em segundo lugar vem um assunto pecuniário: o
malvado farejou o meu orçamento, percebe nele um desequilíbrio e
dispõe-se a endireitá-lo.
— Com
meia dúzia de penadas, V. ganha um dinheirão, filho de Deus.
O
jeito que tenho é convencer-me, decidir contar a origem de Paulo
Honório, alagoano, viçosense, chegado ao Rio há doze anos e
hospedado na Ariel.
Aqui
vai a tarefa. Em 1924, em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas,
encontrei dificuldade séria, pus-me a ver inimigos em toda a parte e
desejei suicidar-me. Realmente julgo que me suicidei. Talvez isto não
seja tão idiota como parece. Abandonando o contas-correntes, o
diário, outros objetos da minha profissão, havia-me embrenhado na
sociologia criminal. Que me induziu a isso? Teria querido matar
alguns fantasmas que me perseguiam?
Naquele
inverno de 1924, numa casa triste do Pinga-Fogo, sentado à mesa da
sala de jantar, fumando, bebendo café, ouvindo a arenga dos sapos, o
mugido dos bois nos currais próximos e os pingos das goteiras, enchi
noites de insônia e isolamento a compor uma narrativa. Surgiu um
criminoso, resumo de certos proprietários rijos existentes no
Nordeste. Diálogo chinfrim, sintaxe disciplinada, arrumação
lastimosa. Felizmente essas folhas desapareceram. Mas as preocupações
que me afligiam desapareceram também, pelo menos adelgaçaram:
ressurgi, desenferrujei a alma, tornei-me prefeito municipal.
Aventuro-me a admitir, pois, que o suicídio se tenha de fato
realizado.
Passaram-se
anos. Deixei a prefeitura, vendi a loja, mudei-me para Maceió e fui
bocejar, falar ao telefone e discutir literatura na Imprensa Oficial.
Em consequência da bagunça revolucionária de 30, demiti-me — e
no começo de 1932 arrastava-me de novo em Palmeira dos Índios, com
vários filhos pequenos, sem ofício nem esperanças, enxergando em
redor nuvens e sombras.
Nessa
crítica situação voltou-me ao espírito o criminoso que em 1924 me
havia afastado as inquietações — um tipo vermelho, cabeludo,
violento, de mãos duras, sujas de terra como raízes, habituadas a
esbofetear caboclos na lavoura. As outras figuras da novela não
tinham relevo, perdiam-se a distância, vagas e inconsistentes, mas o
sujeito cascudo e grosseiro avultava, no alpendre da casa-grande de
S. Bernardo, metido numa cadeira de vime, cachimbo na boca, olhando o
prado, novilhas caracus, habitações de moradores, capulhos
embranquecendo o algodoal, paus-d’arco floridos a enfeitar a mata.
E, sem recorrer ao manuscrito de oito anos, pois isto prejudicaria
irremediavelmente a composição, restaurei o fazendeiro cru, à
lápis, na sacristia da igreja enorme que o meu velho amigo padre
Macedo andava a construir. Surgiam personagens novas, e a história
foi saindo diversa da primitiva.
Até
o capítulo XVIII tudo correu sem transtorno. Um dia de fevereiro, ao
entrar em casa, senti arrepios. À noite, com febre, fiz o capítulo
XIX, uma confusão que mais tarde, quando me restabeleci, conservei.
A
doença prendeu-me à cama uns três ou quatro meses. Viagem a
Maceió, exames, diagnósticos equívocos, junta médica, entrada no
hospital, operação, quarenta e tantos dias com um tubo de borracha
a travessar-me a barriga, delírios úteis na fabricação de um
romance e de alguns contos, convalescença morosa.
Ao
sair do hospital, com uma perna encrencada, coxo, na ferida ainda
aberta uma tampa de esparadrapo, recomecei o trabalho, que fui
terminar em Palmeira dos Índios, na minha casa do Pinga-Fogo,
ouvindo os sapos, a ventania, os bois de seu Sebastião Ramos. Às
vezes meu pai me visitava carrancudo, largava uns monossílabos. A
carranca e fragmentos de velhas narrações dele combinaram-se na
edificação de Paulo Honório. Infelizmente esse colaborador morreu
em 1934 e não chegou a ler o romance.
A
língua, as imagens rurais, apanhei-as em consultas pacientes a meus
irmãos e cunhados, gente matuta. Usei com abundância antigas
expressões portuguesas que circulam em todo o Nordeste.
Finda
a escrita, copiei-a, tentando suprimir-lhe excrescências e
acessórios dispensáveis. Houve, pois, três redações: uma
completamente abandonada em 1924, duas em 1932. Esforcei-me em
demasia para conseguir simplicidade.
Em
novembro Paulo Honório me parecia mais ou menos apresentável.
Acompanhou-me à capital. Valdemar Cavalcanti datilografou-o. Gastão
Cruls editou-o. E os críticos lhe dispensaram algumas cortesias.
Em
Palmeira dos Índios, onde foi gerado, ninguém deu por ele. Apenas
seu Digno, parente de minha mãe, vaqueiro, informado de que certo
livro tinha sido feito por mim, desconfiou, duvidou. E como lhe
falassem com segurança, pegou a brochura, mediu-a, pesou-a,
examinou-lhe a capa, a ilustração de Santa Rosa — e opinou:
— Quem
diria? Sim, senhor. Está um trabalhinho direito.
Graciliano
Ramos, in Garranchos
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