terça-feira, 8 de outubro de 2019

O incendiador de caminhos

Uma das intervenções a que sou chamado a participar em Moçambique destina-se a combater as chamadas “queimadas descontroladas”. Este combate parece ter todo o fundamento: trata-se de proteger ecossistemas e de conservar espaços úteis e produtivos.
Contudo, eu receio que seja mais uma das ingratas batalhas sem hipótese de sucesso imediato. Na realidade, nós não entendemos a complexa ecologia do fogo na savana africana. Não entendemos as razões que são anteriores ao fogo. De qualquer modo, não param de me pedir para que fale com os camponeses sobre os malefícios dos incêndios rurais. Devo confessar que nunca fui capaz de cumprir essa incumbência.
Na realidade, o que tenho feito é tentar descortinar algumas das razões que levam os camponeses a converter os capinzais em chamas. Sabe-se que a agricultura de corte e queimada é uma das principais razões para estas práticas incendiárias. Mas fala-se pouco de um outro culpado que é uma personagem a que chamarei de “homem visitador”. É sobre este “homem visitador” que irei falar neste breve depoimento.
Na família rural de Moçambique, a divisão de tarefas sugere uma sociedade que faz pesar sobre a mulher a maior parte do trabalho. Os que adoram quantificar as relações sociais publicaram já gráficos e tabelas que demonstram profusamente que, enquanto o homem repousa, a mulher se ocupa o dia inteiro. Mas esse mesmo camponês faz outras coisas que escapam aos contabilistas sociais. Entre as ocupações invisíveis do homem rural sobressai a visitação. Esta atividade é central nas sociedades rurais de Moçambique.
O homem passa meses do ano prestando visitas aos vizinhos e familiares distantes. As visitas parecem não ter um propósito prático e definido. Quando se pergunta a um desses visitantes qual a finalidade da sua viagem ele responde: “Só venho visitar”. Na realidade, prestar visitas é uma forma de prevenir conflitos e construir laços de harmonia que são vitais numa sociedade dispersa e sem mecanismos estatais que garantam estabilidade.
Os visitadores gastam a maior parte do tempo em rituais de boas-vindas e de despedida. Abrir as portas de um sítio requer entendimentos com os antepassados que são os únicos verdadeiros “donos” de cada um dos lugares. Pois os homens visitadores percorrem a pé distâncias inacreditáveis. À medida que progridem, vão ateando fogo ao capim. A não ser que seja em pleno Inverno, esse capim arde pouco. O fogo espalha-se e desfalece pelas imediações do atalho que os viajantes vão percorrendo. Esse incêndio tem serviços e vantagens diversas que se manifestam claramente no regresso: define um mapa de referência, afasta as cobras e os perigos de emboscadas, facilita o piso e torna o retorno mais fácil e seguro.
Sendo um intruso nesta lógica, jamais aceitei a militância que me incumbiram no combate às queimadas: nunca fui capaz de dissuadir um desses incendiadores de caminhos. É bem verdade que não me move suficiente convicção. Mesmo que tivesse fortes crenças, nunca conseguiria desconvencer um desses camponeses. Porque eles são movidos por razões que não serão apenas práticas. Sobre essas razões falaremos mais adiante.
A pergunta que dá pretexto a este encontro é simples: O que nos leva à errância quando bem podíamos ficar quietos? Essa pergunta suscita outras perguntas. Algumas delas são próximas da minha área de saber: Está o desejo da viagem inscrito nos nossos genes? Faz parte da nossa natureza?
Acredito que a essência do Homem é não ter essência. Por isso, quando nos interrogamos sobre o gosto de deambular, as respostas devem ser encontradas na nossa história. É nesse terreno que entenderemos a origem e o percurso desse gosto. Nesse terreno entenderemos o nosso tão antigo apetite pela viagem.
A nossa espécie foi nômada durante centenas de milhares de anos. Se aceitarmos que nascemos como subespécie há 250 mil anos, temos 12 mil anos de sedentarização para 240 mil de nomadismo. Quase 90% do nosso tempo fomos caçadores, deambulando pelas savanas de África.
Durante toda a infância e adolescência da nossa espécie, a nossa primordial vocação foi a caça. Daí a necessidade intrínseca e constante de partir, vasculhar, converter o espaço em território de colecta e de perseguição da presa. A ligação ao lugar sempre foi provisória, efêmera, durando enquanto duravam as estações e a abundância. Nós não sabíamos tomar posse. E não sabíamos tomar posse da terra com receio, talvez, de sermos possuídos pela terra. Sobrevivemos porque fomos eternos errantes, caçadores de acasos, visitantes de lugares que estavam ainda por nascer.
A caça não se resume ao ato de emboscada e captura. Implica ler sinais da paisagem, escutar silêncios, dominar linguagens e partilhar códigos. Implica aprender brincando como fazem os felinos, implica ganhar o gosto e o medo pelo susto, implica o domínio da arte da surpresa e do jogo do faz-de-conta. Nós produzimos a caça mas foi, sobretudo, a caça que nos fabricou como espécie criativa e imaginativa. Durante milênios, apurámos uma cultura de exploração do ambiente, uma relação inquisitiva com o espaço. Durante milênios, a nossa casa foi um mundo sem moradia.
É por isso que é estranho nos perguntarmos hoje sobre o gosto de vaguear. O tema do nosso encontro deveria, de facto, ser invertido. E a pergunta seria: Por que temos gosto em ficar parados em vez de deambularmos constantemente? Ficar é a excepção. Partir é a regra. O Homo sapiens sobreviveu porque nunca parou de viajar. Dispersou-se pelo planeta, inscreveu a sua pegada depois do último horizonte. Mesmo quando ficava, ele estava partindo para lugares que descobria dentro de si mesmo.
Quando nasceu a agricultura, ganhamos o sentido do lugar. A partir de então, fomos dando nomes aos sítios, adocicamos o chão. Entre a paisagem e a humanidade criaram-se laços de parentesco. A terra divinizou-se, tornou-se mãe. Pela primeira vez dispúnhamos de raiz, morávamos numa estação perene. O chão já não oferecia apenas um leito. Era um ventre. E pedia um casamento duradouro.
Paradoxalmente, o sedentarismo inaugurava a ideia de exílio. Viajar passou a ser um apetite que necessitava de ser cerceado. Semear era preciso. As terras passaram a ser objeto de posse. A ideia de fronteira inscreveu-se como silenciosa lei. Mais além, começavam os domínios dos outros. O mundo passou a ter um “dentro” e um “fora”, um “cá” e um “lá”. E a viagem passou a comportar riscos acrescidos. Cresceu o medo de não mais voltar. A primeira epopeia da literatura — a história de Ulisses — é a narrativa de um regresso. A exaltação do retorno sublimava o receio da partida.
É possível que tenha sido assim. Não se pode saber ao certo. Talvez esta distinção de tempos seja demasiado construída, demasiado literária. Possivelmente as coisas foram mais complexas, mais misturadas. Somos todos mestiços de caçadores, colectores e semeadores.
O que importa é que a relação com a viagem nunca foi uma relação objectiva, fria, isenta de fantasia. Mesmo os antigos caçadores, esses que viviam em viagem, mesmo esses cumpriam rituais para se afeiçoarem ao desconhecido. Antes de chegarem ao destino faziam deslocar a sua imaginação colectiva. Do mesmo modo que pintavam nas grutas os animais que iam caçar, eles fantasiavam os lugares distantes, vestiam-nos de crenças, convertiam-nos em narrativas. Afinal, mesmo nas grutas, sempre tivemos agências de viagem para domesticar o inesperado e espicaçar a aventura.
E foi assim: o mais remoto deserto, a mais impenetrável floresta foram sendo povoados com os nossos fantasmas. E hoje todos os lugares começam por ser nomes, lendas, mitos, narrativas. Não existe geografia que nos seja exterior. Os lugares — por mais que nos sejam desconhecidos — já nos chegam vestidos com as nossas projeções imaginárias. O mundo já não vive fora de um mapa, não vive fora da nossa cartografia interior.
Regresso ao homem visitador, a esse incendiário das pradarias moçambicanas, para reconhecer melhor as suas razões ocultas. Nunca nenhum deles me deu ouvidos e eu quase me orgulho desse meu total falhanço. O nosso incendiador de caminhos deve ser visto num universo onde a estrada é um luxo e o transporte uma raridade.
Esta é a realidade da savana que sou obrigado a percorrer na minha profissão de biólogo. E confesso-vos que me vem um arrepio profundo quando à minha frente deixa de haver — mesmo que esbatido — o desenho de um atalho. O amor pela errância parece chocar com a ausência de estrada. Face a um mundo sem pegada, uma estranha fragilidade me assalta, como se houvesse uma ofensa religiosa, o desrespeitar de uma lei que é anterior aos homens. Também a mim, nessa circunstância, me apetece acender um fio de chamas para humanizar a lonjura.
Para além da simplicidade prática do fenômeno, a verdade é que o incendiador de caminhos é um cartógrafo e está desenhando na paisagem a marca da sua presença. Escreve com fogo essa narrativa que é o seu itinerário. Não porque tenha medo de se perder. Mas porque ele quer que a geografia venha beber na sua mão. Eis o que o incendiador de caminhos diz: “Eu sou dono do fogo. O meu gesto faz e desfaz paisagens. Não existe horizonte onde me possa perder. Porque eu sou um criador de caminhos. Eu sou o dono do fogo e sou o dono deste mundo que faço arder. O meu reino são fumos e cinzas. Nesse instante em que as chamas tudo consomem, apenas nesse breve instante, eu sou divino”.
Somos, afinal, parecidos com este visitador. A diferença é que, no nosso caso, não é paisagem mas somos nós mesmos que ardemos. Consumimo-nos nesse momento em que, mesmo parados, partimos à procura do que não podemos ser. Estamos recriando o mundo, refazendo-o a jeito de um livro da nossa infância. Estamos brincando com o destino como o gato que faz de conta que o novelo é um rato.
No início, viajamos porque líamos e escutávamos, deambulando em barcos de papel, em asas feitas de antigas vozes. Hoje viajamos para sermos escritos, para sermos palavras de um texto maior que é a nossa própria Vida.
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

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