Uma
das intervenções a que sou chamado a participar em Moçambique
destina-se a combater as chamadas “queimadas descontroladas”.
Este combate parece ter todo o fundamento: trata-se de proteger
ecossistemas e de conservar espaços úteis e produtivos.
Contudo,
eu receio que seja mais uma das ingratas batalhas sem hipótese de
sucesso imediato. Na realidade, nós não entendemos a complexa
ecologia do fogo na savana africana. Não entendemos as razões que
são anteriores ao fogo. De qualquer modo, não param de me pedir
para que fale com os camponeses sobre os malefícios dos incêndios
rurais. Devo confessar que nunca fui capaz de cumprir essa
incumbência.
Na
realidade, o que tenho feito é tentar descortinar algumas das razões
que levam os camponeses a converter os capinzais em chamas. Sabe-se
que a agricultura de corte e queimada é uma das principais razões
para estas práticas incendiárias. Mas fala-se pouco de um outro
culpado que é uma personagem a que chamarei de “homem visitador”.
É sobre este “homem visitador” que irei falar neste breve
depoimento.
Na
família rural de Moçambique, a divisão de tarefas sugere uma
sociedade que faz pesar sobre a mulher a maior parte do trabalho. Os
que adoram quantificar as relações sociais publicaram já gráficos
e tabelas que demonstram profusamente que, enquanto o homem repousa,
a mulher se ocupa o dia inteiro. Mas esse mesmo camponês faz outras
coisas que escapam aos contabilistas sociais. Entre as ocupações
invisíveis do homem rural sobressai a visitação. Esta atividade é
central nas sociedades rurais de Moçambique.
O
homem passa meses do ano prestando visitas aos vizinhos e familiares
distantes. As visitas parecem não ter um propósito prático e
definido. Quando se pergunta a um desses visitantes qual a finalidade
da sua viagem ele responde: “Só venho visitar”. Na realidade,
prestar visitas é uma forma de prevenir conflitos e construir laços
de harmonia que são vitais numa sociedade dispersa e sem mecanismos
estatais que garantam estabilidade.
Os
visitadores gastam a maior parte do tempo em rituais de boas-vindas e
de despedida. Abrir as portas de um sítio requer entendimentos com
os antepassados que são os únicos verdadeiros “donos” de cada
um dos lugares. Pois os homens visitadores percorrem a pé distâncias
inacreditáveis. À medida que progridem, vão ateando fogo ao capim.
A não ser que seja em pleno Inverno, esse capim arde pouco. O fogo
espalha-se e desfalece pelas imediações do atalho que os viajantes
vão percorrendo. Esse incêndio tem serviços e vantagens diversas
que se manifestam claramente no regresso: define um mapa de
referência, afasta as cobras e os perigos de emboscadas, facilita o
piso e torna o retorno mais fácil e seguro.
Sendo
um intruso nesta lógica, jamais aceitei a militância que me
incumbiram no combate às queimadas: nunca fui capaz de dissuadir um
desses incendiadores de caminhos. É bem verdade que não me move
suficiente convicção. Mesmo que tivesse fortes crenças, nunca
conseguiria desconvencer um desses camponeses. Porque eles são
movidos por razões que não serão apenas práticas. Sobre essas
razões falaremos mais adiante.
A
pergunta que dá pretexto a este encontro é simples: O que nos leva
à errância quando bem podíamos ficar quietos? Essa pergunta
suscita outras perguntas. Algumas delas são próximas da minha área
de saber: Está o desejo da viagem inscrito nos nossos genes? Faz
parte da nossa natureza?
Acredito
que a essência do Homem é não ter essência. Por isso, quando nos
interrogamos sobre o gosto de deambular, as respostas devem ser
encontradas na nossa história. É nesse terreno que entenderemos a
origem e o percurso desse gosto. Nesse terreno entenderemos o nosso
tão antigo apetite pela viagem.
A
nossa espécie foi nômada durante centenas de milhares de anos. Se
aceitarmos que nascemos como subespécie há 250 mil anos, temos 12
mil anos de sedentarização para 240 mil de nomadismo. Quase 90% do
nosso tempo fomos caçadores, deambulando pelas savanas de África.
Durante
toda a infância e adolescência da nossa espécie, a nossa
primordial vocação foi a caça. Daí a necessidade intrínseca e
constante de partir, vasculhar, converter o espaço em território de
colecta e de perseguição da presa. A ligação ao lugar sempre foi
provisória, efêmera, durando enquanto duravam as estações e a
abundância. Nós não sabíamos tomar posse. E não sabíamos tomar
posse da terra com receio, talvez, de sermos possuídos pela terra.
Sobrevivemos porque fomos eternos errantes, caçadores de acasos,
visitantes de lugares que estavam ainda por nascer.
A
caça não se resume ao ato de emboscada e captura. Implica ler
sinais da paisagem, escutar silêncios, dominar linguagens e
partilhar códigos. Implica aprender brincando como fazem os felinos,
implica ganhar o gosto e o medo pelo susto, implica o domínio da
arte da surpresa e do jogo do faz-de-conta. Nós produzimos a caça
mas foi, sobretudo, a caça que nos fabricou como espécie criativa e
imaginativa. Durante milênios, apurámos uma cultura de exploração
do ambiente, uma relação inquisitiva com o espaço. Durante
milênios, a nossa casa foi um mundo sem moradia.
É
por isso que é estranho nos perguntarmos hoje sobre o gosto de
vaguear. O tema do nosso encontro deveria, de facto, ser invertido. E
a pergunta seria: Por que temos gosto em ficar parados em vez de
deambularmos constantemente? Ficar é a excepção. Partir é a
regra. O Homo sapiens sobreviveu porque nunca parou de viajar.
Dispersou-se pelo planeta, inscreveu a sua pegada depois do último
horizonte. Mesmo quando ficava, ele estava partindo para lugares que
descobria dentro de si mesmo.
Quando
nasceu a agricultura, ganhamos o sentido do lugar. A partir de então,
fomos dando nomes aos sítios, adocicamos o chão. Entre a paisagem e
a humanidade criaram-se laços de parentesco. A terra divinizou-se,
tornou-se mãe. Pela primeira vez dispúnhamos de raiz, morávamos
numa estação perene. O chão já não oferecia apenas um leito. Era
um ventre. E pedia um casamento duradouro.
Paradoxalmente,
o sedentarismo inaugurava a ideia de exílio. Viajar passou a ser um
apetite que necessitava de ser cerceado. Semear era preciso. As
terras passaram a ser objeto de posse. A ideia de fronteira
inscreveu-se como silenciosa lei. Mais além, começavam os domínios
dos outros. O mundo passou a ter um “dentro” e um “fora”, um
“cá” e um “lá”. E a viagem passou a comportar riscos
acrescidos. Cresceu o medo de não mais voltar. A primeira epopeia da
literatura — a história de Ulisses — é a narrativa de um
regresso. A exaltação do retorno sublimava o receio da partida.
É
possível que tenha sido assim. Não se pode saber ao certo. Talvez
esta distinção de tempos seja demasiado construída, demasiado
literária. Possivelmente as coisas foram mais complexas, mais
misturadas. Somos todos mestiços de caçadores, colectores e
semeadores.
O
que importa é que a relação com a viagem nunca foi uma relação
objectiva, fria, isenta de fantasia. Mesmo os antigos caçadores,
esses que viviam em viagem, mesmo esses cumpriam rituais para se
afeiçoarem ao desconhecido. Antes de chegarem ao destino faziam
deslocar a sua imaginação colectiva. Do mesmo modo que pintavam nas
grutas os animais que iam caçar, eles fantasiavam os lugares
distantes, vestiam-nos de crenças, convertiam-nos em narrativas.
Afinal, mesmo nas grutas, sempre tivemos agências de viagem para
domesticar o inesperado e espicaçar a aventura.
E
foi assim: o mais remoto deserto, a mais impenetrável floresta foram
sendo povoados com os nossos fantasmas. E hoje todos os lugares
começam por ser nomes, lendas, mitos, narrativas. Não existe
geografia que nos seja exterior. Os lugares — por mais que nos
sejam desconhecidos — já nos chegam vestidos com as nossas
projeções imaginárias. O mundo já não vive fora de um mapa, não
vive fora da nossa cartografia interior.
Regresso
ao homem visitador, a esse incendiário das pradarias moçambicanas,
para reconhecer melhor as suas razões ocultas. Nunca nenhum deles me
deu ouvidos e eu quase me orgulho desse meu total falhanço. O nosso
incendiador de caminhos deve ser visto num universo onde a estrada é
um luxo e o transporte uma raridade.
Esta
é a realidade da savana que sou obrigado a percorrer na minha
profissão de biólogo. E confesso-vos que me vem um arrepio profundo
quando à minha frente deixa de haver — mesmo que esbatido — o
desenho de um atalho. O amor pela errância parece chocar com a
ausência de estrada. Face a um mundo sem pegada, uma estranha
fragilidade me assalta, como se houvesse uma ofensa religiosa, o
desrespeitar de uma lei que é anterior aos homens. Também a mim,
nessa circunstância, me apetece acender um fio de chamas para
humanizar a lonjura.
Para
além da simplicidade prática do fenômeno, a verdade é que o
incendiador de caminhos é um cartógrafo e está desenhando na
paisagem a marca da sua presença. Escreve com fogo essa narrativa
que é o seu itinerário. Não porque tenha medo de se perder. Mas
porque ele quer que a geografia venha beber na sua mão. Eis o que o
incendiador de caminhos diz: “Eu sou dono do fogo. O meu gesto faz
e desfaz paisagens. Não existe horizonte onde me possa perder.
Porque eu sou um criador de caminhos. Eu sou o dono do fogo e sou o
dono deste mundo que faço arder. O meu reino são fumos e cinzas.
Nesse instante em que as chamas tudo consomem, apenas nesse breve
instante, eu sou divino”.
Somos,
afinal, parecidos com este visitador. A diferença é que, no nosso
caso, não é paisagem mas somos nós mesmos que ardemos.
Consumimo-nos nesse momento em que, mesmo parados, partimos à
procura do que não podemos ser. Estamos recriando o mundo,
refazendo-o a jeito de um livro da nossa infância. Estamos brincando
com o destino como o gato que faz de conta que o novelo é um rato.
No
início, viajamos porque líamos e escutávamos, deambulando em
barcos de papel, em asas feitas de antigas vozes. Hoje viajamos para
sermos escritos, para sermos palavras de um texto maior que é a
nossa própria Vida.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
Texto maravilhoso
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