(North
Saint-Andrews, Hollywood)
Sim,
cidadãos, esta primeira crônica que vos mando da minha peqena casa
fria de 635 North Saint-Andrews, Hollywood, é uma declaração, de
amor à pátria. Se eu tiver que morrer, como disse o poeta, meu Deus
não seja já. Antes gostaria de rever tanta coisa, tanta coisa que
aí gorjeia diferente. O azul do céu de maio, por exemplo,
prisioneiro dos edificios da rua Araújo Porto Alegre, eu sentado nas
rubras cadeiras de palha do Café Vermelhinho, traçando a minha
brahma-extra, com um desejo vago de evasão. Não, não seja já.
Quero ouvir cantar ainda Lúcio Rangel, nos grandes sambas de Noel, e
Ismael Silva nos sambas dele próprio. Quero me locomover
dificilmente, quero ir de oito-em-pé examinando o colo das mulheres
sentadas, antipatizando com o trocador; ou então de lotação,
apanhado quase a pescoção ali no princípio da Avenida. Se eu tiver
que morrer agora, juro, vou com um gosto de fel para o sepulcro.
Hollywood é bonito, não há dúvida, mas não tem essas estrelas
flores vida amores.
As
estrelas aqui brilham vazias, num céu perfeitamente deslumbrado.
Claro que aí nunca me teria sido possível ficar de joelho mole à
vista de Marlene, entrando ofídica no Ciro's, e tê-la por duas
horas ombro a ombro, sentindo-lhe o perfume dos cabelos: namorava com
outro, mas que importa? Claro que aí eu não poderia dar
familiarmente adeus a Ann Sheridan, telefonar para minha amiga Margo,
dançar com Lynn Bari, nem ouvir Fritz Lang contar seus filmes. Mas
botante, tirante, que vale isso comparado com as nossas menininhas? Ô
meninas em flor da pátria minha, que amores não sois vós! Gaveanas
discretas; Leblonenses e lpanemenses bicicletantes; Copacabanenses
louras e salgadas; Botafoguenses familiais, de olhos íntimos;
Cateteanas e Flamengas futingueiras, eternas pensionistas;
Laranjeirenses calmas e bucólicas; moças da Glória, que nunca se
sabe; jovens citadinas, funcionárias de caixas e pensões,
arquivistas, secretárias, datilógrafas, a encher os cafés das duas
horas para a média com canoa-torrada, para a gemada, para o mingau
(meu Deus, o mingau! inclusive um que tem uma camada de chocolate por
cima, e dorme dias nas vitrinas dos botecos!), para o malted-milk
(que aqui é bem melhor, entre parênteses), para a canjiquinha. E as
grandes, bovarianas bem-amadas, as grandes bem-amadas da Tijuca! Não
há dúvida, nisso tudo entra muito de lirismo - mas não é o
lirismo a expressão indizível da beleza?
E
assim foi, assim é, assim será. Por isso eu peço sempre, eu peço
muito: meu Deus, não seja já! Quero ainda ouvir cantar Araci de
Almeida e, fora do rádio, minha cara amiga Mariinha, em fados
tropicais, quando de noite, no Alcazar, ela se disputa em beleza com
a lua de Copacabana. Eu não nego que gosto muito de viajar, e que
depois de algum tempo começo a achar isso aí bastante pau. Mas,
daqui do Pacífico, mesmo o que é pau dá flor aí no Atlântico,
nessas pudendas praias da Niemeyer onde eu fui tantas vezes namorado.
Sim,
não há dúvida: são saudades da pátria, e sobretudo do que na
pátria é pobre e diferente. Aqui mulher é dízima inflinita, todas
louras lindas e dentifrícias. Nunca verás moringa na janela; pano
de mesa antigo; quadradinhos de jornal no prego da parede da
“casinha”; empregada no portão; moça de rua transversal de
olhar frustrado; bica sem água (isso é handicap!); açougue
aceso de madrugada; bidé; cachorro vira-lata; flores de papel no fio
elétrico; casais de crioulos a namorar no escuro em geniais
posturas; meninas da Escola Amaro Cavalcanti; espetaculares
saltadores de bonde andando; aquele chá noturno de família
burguesa, com um galo de flanela cobrindo o bule; o footing em
redor do coreto da praça; a redação do jornal, tão democrática;
o bom cafajeste carioca de sola alta e gomina no cabelo; o abandono
geral à humana vida, o abandono geral...
Não,
meu Deus, se eu tiver que morrer, espera um pouco. Quero rever também
outras colinas, com miséria talvez - quanta miséria! - mas com um
manso perdão para a cidade. Quero rever também outras meninas,
outras crianças, outras cucarachas: a nossa também tem muito mais
bossa. Quero rever Governador, a Ilha! que minha amiga Rachel de
Queiroz pensa que é dela, mas não se engane, é nossa. Quero
repalmilhar a praia de Cocotá, onde dez anos fui feliz. E rever
Lopes Quintas, Dona Mariana, Bambina, Campos de Carvalho, Ataulfo de
Paiva, todos esses senhores e senhoras, e Acácias, rua minha! - e a
praia de Ipanema e aquele apartamento nem tão pequenino, onde o
nosso amor nasceu, ai!
Não,
me dá por favor, dois ou três anos - meu Deus, não seja já!
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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