terça-feira, 17 de setembro de 2019

Por que o mercado de ações não tem consciência

Outra história utilizada para justificar a superioridade humana é a de que, de todos os animais sobre a Terra, somente o Homo sapiens tem uma mente consciente. Mente é algo muito diferente de alma. A mente não é uma entidade eterna mística. Nem é um órgão, como o olho ou o cérebro. É, sim, um fluxo de experiências subjetivas, como a dor, o prazer, a raiva e o amor. Essas experiências mentais são feitas de sensações, emoções e pensamentos interconectados, que lampejam por um breve momento e imediatamente desaparecem. Depois, outras experiências cintilam e se desfazem, surgem por um instante e logo morrem. (Quando refletimos sobre isso, não raro tentamos distribuir as experiências em categorias distintas, como sensações, emoções e pensamentos, mas na realidade elas estão todas mescladas.) Essa coleção frenética de experiências constitui o fluxo da consciência. Diferentemente da alma eterna, a mente tem muitas partes, muda constantemente, e não há motivo para pensar que seja eterna.
A alma é uma história que algumas pessoas aceitam e que outras rejeitam. O fluxo da consciência, em oposição, é a realidade concreta que testemunhamos diretamente a cada momento. É o que há de mais certo no mundo. Não se pode duvidar de sua existência. Mesmo quando, consumidos pela dúvida, perguntamos a nós mesmos: “Experiências subjetivas existem?”, podemos estar certos de que estamos experimentando uma, em forma de dúvida. O que são exatamente as experiências conscientes que constituem o fluxo da mente? Toda experiência subjetiva apresenta duas características fundamentais: sensação e desejo. Robôs e computadores não têm consciência porque, a despeito de suas muitas aptidões, não sentem nada e não anseiam por nada. Um robô pode ter um sensor de energia que sinaliza a seu processador central quando a bateria está para se esgotar. O robô pode então ir em direção a uma tomada elétrica, conectar-se e recarregar sua bateria. Contudo, no decorrer desse processo ele não experimenta coisa alguma. Em contraste, um ser humano cuja energia foi exaurida sentirá fome e ansiará por interromper essa sensação desagradável. Por isso dizemos que humanos são seres conscientes e os robôs não são; por isso é crime fazer pessoas trabalharem até desabarem de fome e de exaustão, enquanto fazer robôs trabalharem até que suas baterias se descarreguem não encerra um opróbrio moral.
E quanto aos animais? São conscientes? Têm experiências subjetivas? É aceitável que se obrigue um cavalo a trabalhar até cair de exaustão? Como já foi observado, as ciências biológicas afirmam atualmente que todos os mamíferos e todas as aves, e pelo menos alguns répteis e peixes, apresentam sensações e emoções. Contudo, as teorias mais recentes sustentam também que sensações e emoções são algoritmos de processamento de dados bioquímicos. Já sabemos que robôs e computadores processam dados sem ter nenhuma experiência subjetiva; será que isso funciona da mesma maneira com os animais? Realmente, mesmo nos humanos muitos circuitos cerebrais sensoriais e emocionais podem processar dados e desencadear ações de modo completamente inconsciente. Assim, quem sabe por trás de todas as sensações e emoções que atribuímos aos animais — fome, medo, amor e lealdade — se ocultem apenas algoritmos inconscientes e não experiências subjetivas?
Essa teoria foi defendida pelo pai da filosofia moderna, René Descartes. No século XVII, Descartes afirmou que somente humanos sentiam e tinham anseios; todos os outros animais seriam autômatos irracionais, semelhantes a robôs ou máquinas de venda automática. Quando um homem chuta um cão, o cão não experimenta nenhuma sensação. Ele se encolhe e gane automaticamente, do mesmo modo que uma zumbidora máquina de venda, que prepara um café sem sentir ou querer coisa alguma.
Tal teoria foi amplamente aceita na época de Descartes. Médicos e estudiosos do século XVII dissecavam cães vivos sem nenhuma anestesia ou escrúpulo e observavam o funcionamento de seus órgãos internos. Não viam nada de errado nisso, assim como não vemos nada de errado em abrir a tampa de uma máquina de venda automática para observar suas engrenagens e mecanismos de transporte. No início do século XXI ainda há muita gente para quem animais não têm consciência, ou, no melhor dos casos, têm uma consciência muito diferente e inferior.
Para poder decidir se animais possuem mentes conscientes semelhantes à nossa, temos primeiro de compreender melhor como funciona a mente e que papel ela desempenha. São questões extremamente difíceis, mas vale a pena dedicar algum tempo a elas porque a mente será protagonista de capítulos subsequentes. Não seremos capazes de atinar com todas as implicações de tecnologias inovadoras, como a da inteligência artificial, se não soubermos o que é a mente. Então, deixemos de lado por um momento a questão específica das mentes animais e examinemos o que a ciência sabe sobre mentes e consciências em geral. Vamos nos concentrar em exemplos extraídos do estudo da consciência humana — que nos é mais acessível — e retornar depois aos animais e perguntar se o que era verdade em relação a humanos também o é em relação a nossos primos peludos e plumados.
Para ser franco, a ciência sabe surpreendentemente pouco sobre mentes e consciência. A ortodoxia atual sustenta que a consciência é criada por reações eletroquímicas no cérebro e que as experiências mentais realizam alguma função essencial de processamento de dados. No entanto, ninguém tem a menor ideia de como um amontoado de reações bioquímicas e correntes elétricas no cérebro criam a experiência subjetiva da dor, da raiva ou do amor. Talvez tenhamos uma explicação sólida dentro de dez ou cinquenta anos. Mas em 2016 não dispomos delas, e é melhor sermos claros quanto a isso.
Com o uso de imagens por ressonância magnética funcional e a implantação de eletrodos e outros dispositivos sofisticados, os cientistas identificaram correlações e até mesmo ligações causais entre correntes elétricas no cérebro e várias experiências subjetivas. Só de olhar para a atividade cerebral, os cientistas podem dizer se você está acordado, sonhando ou em sono profundo. Podem disparar brevemente uma imagem diante de seus olhos, exatamente no limiar da percepção consciente, e determinar (sem lhe perguntar) se você captou ou não o conteúdo da imagem. Já é possível conectar neurônios cerebrais individuais com conteúdo mental específico e descobrir, por exemplo, um neurônio “Bill Clinton” e um neurônio “Homer Simpson”. Quando o neurônio “Bill Clinton” está ativo, a pessoa está pensando no quadragésimo segundo presidente dos Estados Unidos; mostre à pessoa uma imagem de Homer Simpson, e o neurônio homônimo entrará em ação.
Num sentido mais amplo, os cientistas sabem que, se surgir uma tempestade elétrica em determinada região do cérebro, provavelmente você sentirá raiva. Se essa tempestade se acalmar e uma região diferente se acender — você estará experimentando o amor. De fato, cientistas podem mesmo induzir sentimentos de raiva ou de amor estimulando eletricamente os neurônios certos. Mas como é que uma movimentação de elétrons de um lugar a outro se traduz em uma imagem subjetiva de Bill Clinton ou em um sentimento subjetivo de raiva ou amor?
A explicação mais comum aponta para o fato de que o cérebro é um sistema altamente complexo, com mais de 80 bilhões de neurônios conectados em numerosas e intricadas redes. Quando bilhões de neurônios enviam bilhões de sinais elétricos para cá e para lá, surgem experiências subjetivas. Mesmo que o envio e o recebimento de cada sinal elétrico constituam um simples fenômeno bioquímico, a interação entre todos esses sinais cria algo muito mais complexo — o fluir da consciência. Observamos essa mesma dinâmica em muitos outros campos. O movimento de um único automóvel é uma ação simples, mas, quando milhões de carros se movem e interagem simultaneamente, surge um engarrafamento no trânsito. A compra e a venda de uma única ação são bastante simples, no entanto, quando milhões de negociantes compram e vendem milhões de ações, isso pode levar a uma crise econômica capaz de surpreender até mesmo os especialistas.
Essa explicação, porém, não explica nada. Apenas indica que o problema é muito complicado. Não oferece nenhum discernimento de como um tipo de fenômeno (bilhões de sinais elétricos se movimentando para cá e para lá) cria um tipo muito diferente de fenômeno (experiências subjetivas de raiva e amor). A analogia com outros processos complexos, tais como engarrafamentos no trânsito e crises econômicas, é falha. O que provoca um engarrafamento no trânsito? Se você acompanhar um único carro, nunca vai compreender. O engarrafamento resulta das interações entre muitos carros. O carro A influi na movimentação do carro B, este bloqueia o caminho do carro C, e assim por diante. Mas, se você mapear o percurso de todos os carros relevantes, e como o de cada um impacta o dos outros, terá um quadro completo do engarrafamento. Seria inútil perguntar “Como é que todas essas movimentações provocam o engarrafamento?”. “Engarrafamento de trânsito” é tão somente um termo abstrato que nós humanos decidimos usar para designar esse conjunto específico de eventos.
Em contraste, “raiva” não é um termo abstrato que decidimos usar como uma notação estenográfica para bilhões de sinais elétricos no cérebro. A raiva é uma experiência extremamente concreta com a qual as pessoas estavam familiarizadas muito antes de terem qualquer conhecimento sobre eletricidade. Quando digo “Estou com raiva!”, estou apontando para um sentimento muito tangível. Se você descreve como uma reação química em um neurônio resulta em um sinal elétrico, e como bilhões de reações semelhantes resultam em bilhões de sinais adicionais, ainda vale perguntar: “Como esses bilhões de eventos se juntam para criar um sentimento concreto de raiva?”.
Quando milhares de carros percorrem lentamente seus caminhos através de Londres, damos a isso o nome de engarrafamento, sem que se crie uma consciência londrina que paira bem alto sobre Piccadilly e diz para si mesma: “Caramba, sinto-me engarrafada!”. Quando milhões de pessoas vendem bilhões de ações, chamamos isso de crise econômica, mas nenhum grande espírito de Wall Street resmunga: “Merda, estou em crise”. Quando trilhões de moléculas de água se aglutinam no céu, nós chamamos isso de nuvem, mas nenhuma nuvem surge conscientemente para anunciar: “Sinto-me chuvosa”. Como é, então, que, quando bilhões de sinais elétricos se movimentam pelo meu cérebro, surge uma mente com a sensação “Estou furioso!”? A essa altura, em 2016, não temos a menor ideia a respeito.
Então, se esta discussão o deixou confuso e perplexo, você está em ótima companhia. Os melhores cientistas também estão muito longe de decifrar o enigma da mente e da consciência. Uma das coisas maravilhosas em relação à ciência é que, quando cientistas não sabem alguma coisa, eles podem tentar todos os tipos de teorias e hipóteses, mas ao final têm de admitir sua ignorância.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã

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