O
Centro Esquecido de São Paulo, que cerca as estações rodoviária e
ferroviária, me dá a sensação de estar montado num carrossel
alucinado. As imagens circulam vorazmente, não dá tempo de
fixá-las. Tudo o que vejo são manchas velozes, imprecisas,
misturadas a música, gritos, vozes, passos.
É
o comércio livre. Onde se vendem objetos de segunda mão, roupas
usadas, sobras de remédios, livros e revistas velhas (caríssimos),
eletrodomésticos retificados, peças de reposição, tiradas de
carros que não funcionam mais, mesquinharias. Aqui, compra quem
quer, não exigem fichas apropriadas.
Essa
calma e vagarosidade me dão a impressão de doença. Os olhos que
entrevejo são baços, as bocas repuxadas. Os movimentos retardados,
automatizados. Os narizes tremem, perturbados pelo fedor à nossa
volta. Não há como evitar. Esta é uma cidade sobre a qual se
perdeu todo o controle.
O
visual indicativo, produto típico do Grande Ciclo das Comunicações,
me informa: teatro. As placas de metal são mal-conservadas, a
pintura descascou, há marcas de tiros. Há quantos anos não vou a
um teatro? Nem sabia dizer se ainda existiam por aí. Vejo que sim,
fiquei curioso.
Estão
na Zona Restrita aos Divertimentos. No entanto os grandes teatros
funcionam sob égides das Corporações Empresariais. Os ingressos
não são mais vendidos, e sim trocados pelos tickets de compras.
Cada ticket comercial equivale a setenta por cento do preço do
bilhete.
São
válidos apenas os tickets cujo valor exceda duas vezes e meia o
limite mínimo do consumo obrigatório. Falam que, apesar das
dificuldades, os teatros vivem cheios. Tanto as peças normais,
obrigatoriamente comédias digestivas, como os grandes shows musicais
com os cantores de sucesso.
Passo
três vezes diante do teatro. Olhar, interessar, fingir, continuar,
voltar. Diante da porta, dois homens me encaram, vou embora. Podem
comentar. Besteira, timidez absurda. Uma vez, faz tempo, assisti a um
filme curioso. Chamava-se O homem que nunca existiu. Fita
comum, passou desapercebida.
Não
para mim. Fiquei fascinado com aquele homem que nunca tinha sido.
Tentava entender por que e começo a chegar ao ponto de compreensão.
Estou subindo esta escada em caracol, pensando que não devo subi-la.
Carreguei sempre este sentimento de que não devo estar. Querer, não
ir.
Onde
vai dar a escada? Os stripteases prometidos serão reais? Espetáculo
de museu, não sei como ainda existe, esquecido neste centro caótico.
O que mais terá o velho centro preservado? Sempre tive curiosidade
em relação ao desconhecido. Avançava com medo sobre ele. Mas
avançava.
Cheguei
a elaborar para meus alunos uma teoria interessante do Risco Terrível
que é o Eterno Conhecido. Uma cópia do trabalho foi anexada ao
processo que me deu a compulsória. Não tinha como explicar. Aqueles
homens procuravam subversão e a pasta marrom cheia de folhas
forneceu o que desejavam.
A
sala de aulas era o único lugar onde me sentia bem. Liberado. À
frente dos alunos, diante do quadro-negro. Eles gostavam de mim
porque eu insistia em sair dos currículos estreitos, organizados de
modo a formar baterias conformadas de tecnoburocratas. Tecnocratas,
disso o país precisa.
Ouvia
isso com exaustão, a cada reunião de professores, nas visitas de
inspetor, lia nos boletins do ministério. Os alunos nem conseguiam
mais formular questões. Eu mesmo levantava perguntas que nunca me
seriam feitas, trazia respostas que nunca outros dariam. Nem eu,
mais.
Sala
de primeiro andar, espelhos rachados nas paredes. Cortinas vemelhas,
remendadas, cobrindo parte dos espelhos. Letreiros recomendando o
churrasco especial da casa, frango com farofas e batata. Tinha sido a
parte superior de um restaurante antes de ser teatro pulgueiro.
Picada
dolorida no braço. Bato com a mão, instintivamente. Mato um inseto
marrom. O braço fica latejando. A sala está quase vazia. Discos
fanhosos, cheios de ruídos, boleros, rocks, discotecas, músicas
fora de moda, tocam por trás da cortina ensebada. Me sinto solto, de
repente.
Toda
sensação ruim escorre. Posso ficar aqui, ou em outro lugar, quanto
tempo quiser. Me vem a vontade de ir embora. Sobre a porta, o painel
desbotado, há muito esquecido ali. Anuncia o espetáculo: Adão e
suas sexy sete Evas. Todas loiras, olhos azuis. Adão com a maçã.
O
porteiro corcunda me olha espantado. “Nem começou, doutor, já
vai? Não podemos devolver o ingresso.” Nem respondo, saio, imagino
que na parede em frente estão pousados milhares de insetos marrons,
a zumbir. A maçã de Adão, desenhada como um símbolo fálico.
Vermelho, empalidecido.
O
sol desaparece de repente, como todas as tardes. Não há mais
crepúsculo desses que alegram calendários em casa de caboclo.
Aliás, não há caboclos, as últimas migrações do campo se deram
há cinco anos. Nas zonas rurais não ficou ninguém. Para quê?
Somos um país urbano. A terra gretada não produz nada.
É
curioso. O dia está quente, o sol ardido. Quando chega pela altura
de oito horas, cai o escuro. Quando menos se espera, não há luz. O
mormaço continua por algumas horas e sofre uma queda brusca. Certas
noites, não dá para dormir sem um ou dois cobertores. Quem entende
de física?
Não
é sempre. O melhor é ter a coberta à mão. No entanto, às vezes,
o mormaço permanece inalterado, a gente sente falta de ar. Quer
beber água o tempo inteiro. Nessas noites, ninguém dorme.
Percebe-se por trás das janelas o ciciar abafado das conversas. No
dia seguinte, todos mal-humorados.
Estou
há três dias fora de casa. Talvez mais. Sei lá. Não importa.
Ficar andando perde o sentido, sinto falta da minha sala, do quarto.
E Adelaide? Se conseguir enganar o fiscal do ônibus, não preciso
voltar a pé. Estou cansado, sem vontade de andar tanto. O ponto
vazio, o S-7.58 chega.
– Posso
viajar neste carro?
– Por
que não?
– Pensei
que fosse proibido.
– Só
se o senhor não tiver ficha de circulação.
– Tem
certeza que posso?
– Nunca
se proibiu ninguém de andar de ônibus.
– Dois
dias atrás não me deixaram entrar. Me jogaram para fora.
– Não
deixaram ou jogaram para fora?
– Não
deixaram, forcei, entrei, me atiraram fora.
– Algum
mal-entendido. Um cobrador substituto... Vai ver foi isso...
– Foi
contigo.
– Não
me lembro do senhor. Vai sentar, vai... É melhor.
Viajei
olhando na cara do cobrador atrevido. Nem se dignou me encarar.
Continuou trabalhando como se não tivesse havido nada. Sinto outra
picada no braço, é o inseto marrom. Virando praga, como os grilos.
São meio bobalhões, picam e grudam. Não parecem mosquito, abelha,
motuca, borrachudo.
Quando
enfiei a chave na porta, tive um arrepio estranho. Veio um cheiro de
casa fechada. O silêncio. A esta hora Adelaide sempre está vendo
sua novela, se não for aula de receitas. Tudo escuro. Nunca senti o
cheiro de minha casa parada. Andei por todos os cômodos. Ninguém.
A
casa arrumada, chinelos sobre o tapete de retalhos, o urinol debaixo
da cama. O meu cotidiano. Um bilhete sobre o travesseiro. Letra de
Adelaide. Atirei no urinol e me deitei. Com roupa e tudo, a luz
acesa, fumando, jogando a cinza no chão. Depois, larguei a brasa,
esperei fazer um furo no tapete.
Quando
acordei, ouvi barulhos de rua. Abri a geladeira, só tinha manteiga.
Factícia, com gosto de sebo misturado a plástico. A cozinha estava
em ordem, o chão todo limpo, o banheiro cheirava a detergente. Minha
vida inteira cheirou detergente. Urinei fora da privada, cuspi no
chão.
Fiz
um café fraco, espalhei pó, deixei cair xícaras, quebrei dois
pratos. Vesti um paletó que não combinava com a calça. “Assim
você não pode ir, querido. O que vão dizer no escritório? Que sua
mulher não cuida de você?” Deixei que ela me cuidasse todos esses
anos. Eu a fiz assim, na verdade.
Paletó?
Estou louco? Queimei o paletó no incinerador de lixo. As cinzas não
desceram, o escoadouro estava entupido. O dia nublado. Se ao menos
fosse chuva. Fico com a boca seca de pensar na possibilidade de uma
chuva. Uma garoinha leve que molhasse tudo, umedecesse a terra, me
encharcasse.
As
secas definitivas vieram logo após o grande deserto amazônico. Um
ano sem gota de água e as represas de São Paulo se esgotaram.
Apavorado, o povo fazia promessas, enchia as igrejas. Organizavam
procissões, novenas, romarias. Inúteis. Poços artesianos começaram
a ser abertos às pressas, às centenas.
Por
muito tempo, a secretaria de obras trabalhou em poços. Todas as
verbas foram desviadas para os programas de água. Cada estado contou
consigo, não havia possibilidade de ajudar o outro. O problema era
igual para todos, estavam à beira da calamidade. Charlatões,
fazedores de chuva enriqueceram.
As
chuvas não vieram. De nada adiantaram procissões, rezas, trezenas,
missas, macumbas. Padres gritaram no púlpito que tinha chegado o
juízo final. Parlamentares denunciaram o Esquema no congresso.
Tantos padres e políticos tiveram de se calar sob pena de aplicação
do Definitivo Julgamento.
Onde
será que foi minha mulher? Para a casa da mãe, decerto. Um dia
desses, passo por lá. Bom, féria conjugal faz bem. E a faxineira?
Devia ser dia dela vir. Ou foi ontem? Estava tudo tão arrumado.
Caminhei para o escritório ao sair do ônibus. Maquinal, nem
percebi. Fiquei à espera do elevador.
O
ascensorista me olhou, amedrontado. Seu rosto se refletia nos
espelhos enfumaçados do elevador, imagem reproduzida ao infinito.
Não nítida, toda sombreada, apenas um esboço do rosto. E eu vi
milhares de rostos aterrados me contemplando. O ascensorista não
sabia que atitude tomar.
– Está
lotado!
– Lotado?
Como? Está vazio!
– Vazio,
mas reservado.
– Desde
quando se reserva elevador?
– Me
avisaram que o senhor não trabalha mais aqui. Deram ordens para não
deixá-lo subir.
– Você
me conhece, não fiz nada de mal.
– Para
mim o senhor era até boa pessoa. Não... não é mais...
– Não
sou mais?
– É...
o senhor sabe... tem quem mande... tem quem diz as coisas como devem
ser...
Fechou
a grade interna rapidamente, ficou atento, pronto para subir caso eu
tentasse alguma coisa. Atirei-me contra a grade, rindo, vendo o pavor
desfigurar totalmente o rosto dele. Fiz só para ver o que vão
comentar lá em cima os homens-mesa, homens-gaveta, quietinhos,
obedientes.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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