sábado, 14 de setembro de 2019

Peixe preso e peixe solto

A referência a bandeiras marcadoras e mastros no penúltimo capítulo necessita de alguns esclarecimentos acerca das leis e dos regulamentos da pesca de baleias, da qual a bandeira pode ser considerada o símbolo e a insígnia.
Quando vários navios viajam juntos, sucede com frequência que uma baleia seja atingida por uma embarcação e então consiga fugir, para depois ser morta e capturada por uma outra embarcação; e neste exemplo estão inclusas outras contingências menores, todas participantes deste caso mais importante. Por exemplo, depois da caçada e da captura de uma baleia, o corpo pode se soltar por causa de uma violenta tempestade; e, derivando para bem longe a sotavento, ser recolhida por um outro baleeiro que, com calma e conforto, a leva a reboque sem arriscar a vida ou a corda. Assim, surgiriam as disputas mais vexaminosas e mais violentas entre os baleeiros, se não existisse uma lei incontestável, universal, escrita ou não, e aplicável a todos os casos.
Talvez o único código formal da pesca de baleias autorizado por decreto legislativo seja o da Holanda. Foi decretado pelos Estados-Gerais em 1695. Mas, embora nenhuma outra nação tenha escrito uma lei para a pesca de baleias, os pescadores norte-americanos são os seus próprios legisladores e advogados neste assunto. Providenciaram um sistema que, por sua concisão e amplitude, supera as Pandectas de Justiniano e os Regulamentos da Sociedade Chinesa para Suprimir a Intromissão nos Assuntos de Outras Pessoas. Pois é; essas leis poderiam ser gravadas naqueles míseros cêntimos da rainha Ana, ou na ponta de um arpão, e usadas no pescoço, de tão pequenas.

I. Um peixe preso pertence ao grupo que o prendeu.
II. Um peixe solto é caça regular para aquele que apanhá-lo mais depressa.

Mas o que prejudica esse código magistral é a sua brevidade admirável, o que requer um vasto volume de comentários para explicá-lo. Primeiro: o que é um peixe preso? Vivo ou morto, um peixe está tecnicamente preso quando está ligado a um navio ou a um bote tripulado por um meio controlável pelo ocupante, ou pelos ocupantes, um mastro, um remo, uma corda de nove polegadas, um cabo de telégrafo, ou um fio de aranha, dá tudo na mesma. Do mesmo modo, um peixe está tecnicamente preso quando tem uma bandeira marcadora, ou qualquer outro símbolo de posse reconhecível; desde que o grupo que colocou a bandeira demonstre sua capacidade de levá-lo para o costado a qualquer hora, assim como a sua intenção de fazê-lo.
Estes são comentários científicos; mas os comentários dos próprios baleeiros consistem, por vezes, em palavras desagradáveis e socos ainda mais desagradáveis – são os Coke-upon-Littleton dos punhos. É verdade que entre os baleeiros mais honrados e honestos são sempre feitas concessões para cada caso particular, quando seria uma injustiça moral ultrajante um grupo reivindicar a posse de uma baleia caçada e morta primeiro por um outro grupo. Mas nem todos são tão escrupulosos.
Há cerca de cinquenta anos, deu-se um caso curioso de litígio para a restituição de uma baleia na Inglaterra, no qual os queixosos relataram que, após perseguir com dificuldade uma baleia nos mares setentrionais, eles (os queixosos) conseguiram fincar o arpão no peixe, mas foram obrigados, por fim, dado o perigo que corriam, a abandonar não apenas as cordas como o próprio bote. Mais tarde, os réus (a tripulação do outro navio) avançaram sobre a baleia, golpearam-na, mataram-na, pegaram-na e por fim apropriaram-se dela diante dos queixosos. E, quando foram reclamar aos réus, o comandante mostrou total indiferença diante dos queixosos e garantiu-lhes que, baseado na doxologia da proeza que tinha executado, se apropriaria da corda, arpões e bote, que tinham ficado presos à baleia quando foi capturada. Em consequência, os queixosos abriram um processo para recuperar o montante de sua baleia, corda, arpões e bote.
O senhor Erskine era o advogado dos réus, e o lorde Ellenborough era o juiz. No decurso da defesa, o arguto Erskine, para ilustrar sua posição, citou um caso recente de adultério, no qual um senhor, depois de tentar em vão refrear a depravação da esposa, abandonou-a, por fim, nos mares da vida; mas, com o passar dos anos, arrependeu-se e moveu uma ação para recuperar sua posse. Erskine defendia o outro lado e disse que, embora o cavalheiro tivesse arpoado originalmente a senhora e a tivesse prendido uma vez, e apenas devido à tensão da sua depravação extrema a tivesse abandonado; fato era que, ao abandoná-la, ela havia se tornado um peixe solto; e, por consequência, quando um outro cavalheiro a arpoou, aquela senhora se tornou propriedade do outro cavalheiro, junto com qualquer arpão que estivesse fincado nela.
No caso presente, Erskine sustentava que os exemplos da baleia e da senhora ilustravam um ao outro.
Ouvindo as devidas alegações e as réplicas, o douto juiz, com termos precisos, sentenciou o seguinte: quanto ao bote, ele o adjudicava aos queixosos, pois o tinham abandonado apenas para salvar as suas vidas; mas quanto à controvertida baleia, arpões e corda, estas pertenciam aos réus; a baleia, pois, era um peixe solto na hora da captura; e os arpões e a corda, pois quando ele (o peixe) fugiu, apropriou-se desses objetos; por consequência, quem apanhasse o peixe depois teria direito a eles. Ora, os réus apanharam o peixe depois; ergo, os objetos referidos lhes pertenciam.
Um homem comum que examinasse essa decisão do douto juiz poderia lhe fazer objeções. Mas, aprofundando-se no assunto, ver-se-á que os dois grandes princípios estabelecidos pelas duas leis da pesca de baleias antes referidas e aplicadas e elucidadas pelo referido caso de lorde Ellenborough; essas duas leis de “peixe preso” e “peixe solto”, repito, se pensarmos bem, encontram-se embasadas em toda a jurisprudência humana; pois, a despeito das suas esculturas complicadas, o Templo da Lei, como o Templo dos Filisteus, tem apenas dois pilares para se apoiar.
Não existe um ditado em todas as bocas, segundo o qual a posse é a metade da lei: ou seja, sem se levar em conta como se obteve a coisa? Mas amiúde a posse é a lei por inteiro. O que são os tendões e as almas dos servos Russos e dos escravos Republicanos senão peixe preso, cuja posse equivale à totalidade da lei? Para o senhorio ganancioso, o que são as economias da viúva, senão peixe preso? O que a mansão de mármore do vilão não desmascara com uma placa na porta a servir de bandeira, senão peixe preso? O que é o ágio devastador que Mordecai, o agiota, recebe do coitado do Woebegone, o falido, de um empréstimo para que a família de Woebegone não morra de fome; o que é esse ágio devastador, senão peixe preso? O que é a renda de cem mil libras do Arcebispo de Savesoul, tirada do escasso pão e queijo de milhares de trabalhadores de costas curvadas (todos certos de irem ao céu sem a ajuda de Savesoul), o que é esse número redondo de cem mil, senão peixe preso? O que são as cidades e as aldeias herdadas do duque de Dunder, senão peixe preso? O que é a coitada da Irlanda para John Bull, aquele temível arpoador, senão peixe preso? O que é o Texas para o irmão Jonathan, aquele soldado apostólico armado de lança, senão peixe preso? E, em relação a todos eles, a posse não é a lei por inteiro?
Mas se a doutrina do peixe preso é bastante aplicável, em geral, a doutrina análoga do peixe solto o é ainda mais. É aplicável internacional e universalmente.
O que era a América em 1492, senão um peixe solto, no qual Colombo fincou o estandarte espanhol, como bandeira dos reis, seu senhor e senhora? O que era a Polônia para o czar? A Grécia para os turcos? A Índia para a Inglaterra? O que o México será para os Estados Unidos no final? Todos peixes soltos.
O que são os Direitos do Homem e as Liberdades do Mundo, senão peixe solto? As opiniões e os juízos dos homens, senão peixe solto? O que é o princípio religioso, dentro deles, senão peixe solto? O que são as ideias dos pensadores para os verborrágicos pomposos, senão peixe solto? O que é o próprio imenso globo, senão peixe solto? E o que é você, leitor, senão peixe solto e também peixe preso?
Herman Melville, in Moby Dick

Nenhum comentário:

Postar um comentário