terça-feira, 10 de setembro de 2019

Os espíritos da casa

O cinema americano sempre deu um valor mágico às coisas do cotidiano. Fred Astaire dançava com uma vassoura ou um cabide. Um manequim de costureira era objeto de uma ária de amor. Num desenho animado, um gato conversava com uma chaleira. As coisas da casa serviam para o drama e para a comédia e para estas formas tipicamente americanas de surrealismo que são o desenho e o musical. A própria casa americana era um emblema. Para uma geração criada a filmes americanos, o retrato da paz suburbana com que todos sonhavam era uma rua arborizada com guris sardentos entregando jornais, de bicicleta, as casas de duas garagens. Nestas casas habitava o bom espírito da domesticidade, o espírito padrão da gente normal, isto é, americana. Para o cinema, o terror americano estava nos becos das grandes cidades. E os maus espíritos, em góticas mansões retorcidas, longe dos gramados da classe média.
Em seus filmes Steven Spielberg leva ao extremo esta adoração das coisas da casa que é, no fundo, uma sacralização da infância. Mas também remexe os espíritos domésticos e descobre o terror na cara de um boneco ou na sombra de uma árvore na parede do quarto. O terror nas menores coisas, outra marca da casa na criança. Poltergeist e E.T. se passam praticamente no mesmo lugar, uma comunidade de casas novas para famílias novas, na Califórnia. Os dois filmes são delírios domésticos. Um, Poltergeist, da imaginação adulta aterrorizada pela perda das crianças. O outro da imaginação infantil ferida pela perda de um pai. Com um esforço Poltergeist pode ser visto como a luta da mãe para evitar que seus filhos nasçam de novo, sejam expelidos do ventre protetor da casa para o mundo mortal. O menino de E.T., como o seu novo amigo extraterreno, quer que o lar lhe seja restituído. Home. Nos dois filmes, as mães são quase tão infantis quanto as crianças e acabam suas cúmplices. Se as crianças tivessem decidido ir com E.T. na sua nave, que parece a concepção espacial equivocada de algum artista do século XIX, a mãe poderia ir junto para cuidar de todos, como a irmã mais velha em Peter Pan. Em Poltergeist ninguém tem dúvidas, no fim do filme, de que a mãe conseguirá protelar o segundo parto das crianças por muito tempo ainda. A casa em Poltergeist fica em cima de um sumidouro que representa a morte, as coisas passadas, a degeneração. A casa em E.T. fica perto de uma floresta de histórias de fada, um cenário de encantamento. Em nenhum dos dois casos seus habitantes tinham que ir muito longe de casa para cumprirem suas fantasias. Para Spielberg, que deve ter sido criado numa comunidade parecida com esta, onde o resto do mundo só chegava pela TV, o universo da casa tem todos os terrores, e toda a magia, de que uma imaginação precisa. O subúrbio e suas mães esportivas são recriadas como mito. A magia do cotidiano nunca foi tão longe.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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