quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Onde se revela como Nasser Evangelista ajudou pequeno Soba a fugir da cadeia

Morremos sempre de desânimo, ou seja, quando nos falha a alma – então morremos. Esta a tese de Pequeno Soba. Para a sustentar, o empresário conta o que lhe aconteceu quando o prenderam pela segunda vez. Enfrentou as péssimas condições da cadeia, os maus tratos, as torturas, com uma coragem que surpreendia não só os camaradas de infortúnio como também os guardas prisionais e agentes da polícia política.
Não era coragem, confessa: Eu sofria de muita revolta. A minha alma se revoltava contra as injustiças. Medo, sim, o medo chegava a doer mais do que as pancadas, mas a revolta crescia sobre o medo e então eu enfrentava os polícias. Nunca me calava. Quando gritavam comigo, eu gritava mais alto. A partir de certa altura percebi que os gajos tinham mais medo de mim do que eu deles.
Uma ocasião em que o colocaram de castigo, numa cela minúscula, a que chamavam Kifangondo, Pequeno Soba encontrou um rato e adotou-o. Chamou-o Esplendor, nome talvez demasiado otimista para uma ratazana vulgar, parda e esquiva, com uma orelha ratada e o pelo em muito mau estado. Quando Pequeno Soba reapareceu na cela comum, com Esplendor empoleirado no ombro direito, alguns dos companheiros troçaram dele. A maioria não prestou atenção. Naquela época, no final dos anos setenta, a Prisão de São Paulo reunia uma extraordinária coleção de personalidades. Mercenários americanos e ingleses, capturados em combate, conviviam com exilados do ANC caídos em desgraça. Jovens intelectuais de extrema esquerda trocavam ideias com velhos salazaristas portugueses. Havia sujeitos presos por tráfico de diamantes e outros por não se terem perfilado durante o içar da bandeira. Alguns dos prisioneiros tinham sido importantes dirigentes do partido. Orgulhavam-se da amizade com o Presidente.
Ainda ontem estive a pescar com o Velho, gabou-se um deles a Pequeno Soba: quando souber o que aconteceu tira-me daqui e manda prender os imbecis que me fizeram isto.
Fuzilaram-no na semana seguinte.
Muitos nem sequer sabiam de que eram acusados. Alguns enlouqueciam. Também os guardas enlouqueciam. Os interrogatórios pareciam frequentemente erráticos, despropositados, como se o objetivo não fosse o de arrancar informações aos detidos, apenas torturá-los e confundi-los.
Naquele contexto, um homem com uma ratazana amestrada não chegava a surpreender. Pequeno Soba cuidava de Esplendor. Ensinava-lhe habilidades. Dizia senta-te! e o animal sentava-se. Roda!, ordenava, e a ratazana punha-se a andar aos círculos. Monte ouviu falar no caso e foi à cela visitar o prisioneiro.
Disseram-me que fizeste um novo amigo.
Pequeno Soba não respondeu. Criara para si mesmo a regra de nunca responder a um agente da polícia política, a menos que este gritasse. Nesse caso, atacava-o aos brados, acusando-o de estar ao serviço da ditadura social-fascista, etc. O comportamento do prisioneiro exasperava Monte.
Estou a falar contigo, porra! Não me trates como se eu fosse invisível.
Pequeno Soba voltou-lhe as costas. Monte perdeu a cabeça. Puxou-o pela camisa. Foi nessa altura que viu Esplendor. Lançou a mão ao animal, atirou-o contra o chão e pisou-o. No meio de tantos crimes, tão imensos, que se cometiam na época, ali mesmo, entre as paredes da prisão, a diminuta morte de Esplendor não afetou ninguém, exceto Pequeno Soba. O jovem caiu num profundo desânimo. Passava os dias estendido numa esteira, mudo, imóvel, indiferente aos companheiros de cela. Emagreceu tanto que as costelas saltavam da pele como as teclas de um quissange. Finalmente, levaram-no para a enfermaria.
Quando o prenderam, Nasser Evangelista trabalhava no hospital Maria Pia como ajudante de enfermeiro. Não se interessava por política. Toda a sua atenção estava voltada para uma jovem enfermeira chamada Sueli Mirela, conhecida pelas pernas longas, as quais exibia com generosidade, em minissaias arrojadas, e pela cabeleira redonda, à Angela Davis. A moça, noiva de um agente da segurança de Estado, deixou-se seduzir pelas palavras doces do ajudante de enfermeiro. O noivo, enlouquecido, acusou o rival de ligação aos fracionistas. Preso, Nasser passou a trabalhar na enfermaria. Comoveu-se ao ver o estado de Pequeno Soba. Ele mesmo concebeu e organizou o plano disparatado e, todavia, feliz, que permitiu devolver o debilitado jovem à liberdade. Enfim, a uma liberdade relativa, já que, como o próprio Pequeno Soba gosta de repetir, nenhum homem é livre enquanto outro estiver aprisionado.
Nasser Evangelista registou o óbito de Pequeno Soba, aliás, Arnaldo Cruz, 19 anos de idade, estudante de Direito, e ele mesmo colocou o corpo no caixão. Um vago primo, na realidade um camarada do pequeno partido em que o estudante militava, recebeu o caixão. Enterrou-o, em cerimônia discreta, no Cemitério do Alto das Cruzes. Isto depois de retirar o respetivo passageiro. Pequeno Soba ganhou o hábito de visitar a campa, no aniversário da suposta morte, levando flores a si mesmo: Para mim é uma reflexão sobre a fragilidade da vida e um pequeno exercício de alteridade, explica aos amigos. Vou lá, e tento pensar em mim como num parente próximo. Sou, na verdade, o parente mais próximo de mim. Penso nos defeitos dele, nas qualidades dele, e se merece ou não as minhas lágrimas. Quase sempre choro um pouco.
Passaram meses até a polícia descobrir o logro. Então, voltaram a prendê-lo.
José Eduardo Agualusa, in Teoria geral do esquecimento

Nenhum comentário:

Postar um comentário