sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Ninguém vai rir - 3

Um belo dia, ao terminar meu curso (ensino história da pintura), a secretária, a Sra. Marie, dama afável e idosa que me prepara o café e responde que não estou quando são ouvidas ao telefone indesejáveis vozes femininas, veio bater à porta da sala de aula. Pôs a cabeça no vão da porta e disse que havia um senhor me esperando.
Os senhores não me assustam. Deixei meus alunos e saí tranqüilo pelo corredor, onde um homem baixo, de terno preto surrado e camisa branca me cumprimentou. Depois me anunciou muito respeitosamente que se chamava Zaturecky.
Levei meu visitante para uma sala vazia, ofereci-lhe uma poltrona e iniciei a conversa com um tom jovial, falando sobre assuntos banais; do desagradável verão que atravessávamos e das exposições de Praga. O Sr. Zaturecky concordava polidamente com cada uma de minhas opiniões, mas procurava desviar a conversa para seu artigo que de súbito se ergueu entre nós, em sua invisível substância, como um irresistível ímã.
Escreveria de boa vontade um parecer sobre o seu trabalho — disse eu afinal —, mas já lhe expliquei na minha carta que ninguém me considera um especialista em pintura tcheca do século XIX e que, além disso, não estou nos melhores termos com a redação de O Pensamento Plástico, onde sou visto como um modernista inveterado, e por isso uma apreciação favorável de minha parte poderia apenas lhe ser prejudicial.
Oh! O senhor é demasiado modesto — retrucou o Sr. Zaturecky. — Como um especialista do seu porte pode ser tão pessimista sobre sua própria posição? Disseram-me na redação que tudo agora dependia da sua opinião. Se o senhor for favorável ao meu artigo, ele será publicado. O senhor é a minha única chance. Este trabalho representa três anos de estudos, três anos de pesquisas. Tudo agora está em suas mãos.
Com que indiferença e com que pobre metal forjamos nossos subterfúgios! Não sabia o que responder ao Sr. Zaturecky. Levantando maquinalmente os olhos para ele, vi uns inocentes óculos, pequenos e fora de moda, mas também uma profunda ruga enérgica traçada verticalmente na sua testa. Num breve instante de lucidez, um arrepio me percorreu a coluna vertebral. Aquela ruga atenta e teimosa não refletia apenas o martírio intelectual de seu proprietário debruçado sobre os desenhos de Mikolas Ales, mas também uma força de vontade pouco comum. Perdendo toda a presença de espírito, não conseguia mais encontrar desculpas suficientemente hábeis. Sabia que não redigiria aquele parecer, mas sabia também que não teria a força de dizê-lo diante daquele pequeno homem súplice. De maneira que comecei a sorrir e a proferir vagas promessas. O Sr. Zaturecky me agradeceu dizendo que voltaria de novo para se informar; deixei-o todo sorrisos.
Voltou efetivamente alguns dias mais tarde, consegui evitá-lo com habilidade, mas me informaram no dia seguinte que ele tornara a me procurar na faculdade. Compreendi que a coisa ia mal. Fui logo ao encontro da Sra. Marie a fim de tomar as providências que se impunham.
Por favor, Sra. Marie, se algum dia esse senhor voltar a me procurar, diga a ele que fui fazer uma viagem de estudos à Alemanha e que não estarei de volta antes de um mês. Outra coisa, todas as minhas aulas são às terças e quartas-feiras. Daqui por diante darei minhas aulas às quintas e sextas. Apenas meus alunos serão informados, não diga a ninguém e não modifique o horário. Preciso ficar na clandestinidade.
Milan Kundera, in Risíveis amores

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