sábado, 21 de setembro de 2019

Minha mãe Bigrí e meu padrinho Selorico Mendes

Adiante? Conto. O seguinte é simples. Minha mãe morreu ― apenas a Bigrí, era como ela se chamava. Morreu, num dezembro chovedor, aí foi grande a minha tristeza. Mas uma tristeza que todos sabiam, uma tristeza do meu direito. De desde, até hoje em dia, a lembrança de minha mãe às vezes me exporta. Ela morreu, como a minha vida mudou para uma segunda parte. Amanheci mais. De herdado, fiquei com aquelas miserinhas ― miséria quase inocente ― que não podia fazer questão: lá larguei a outros o pote, a bacia, as esteiras, panela, chocolateira, uma caçarola bicuda e um alguidar; somente peguei minha rede, uma imagem de santo de pau, um caneco-de-asa pintado de flores, uma fivela grande com ornados, um cobertor de baeta e minha muda de roupa. Puseram para mim tudo em trouxa, como coube na metade dum saco. Até que um vizinho caridoso cumpriu de me levar, por causa das chuvas numa viagem durada de seis dias, para a Fazenda São Gregório, de meu padrinho Selorico Mendes, na beira da estrada boiadeira, entre o rumo do Curralinho e o do Bagre, onde as serras vão descendo. Tanto que cheguei lá, meu padrinho Selorico Mendes me aceitou com grandes bondades. Ele era rico e somítico, possuía três fazendas-de-gado. Aqui também dele foi, a maior de todas.

De não ter conhecido você, estes anos todos, purgo meus arrependimentos... ― foi a sincera primeira palavra que ele me disse, me olhando antes. Levei dias pensando que ele não fosse de juizo regulado. Nunca falou em minha mãe. Nas coisas de negócio e uso, no lidante, também quase não falava. Mas gostava de conversar, contava casos. Altas artes de jagunços ― isso ele amava constante ― histórias. 
Ah, a vida vera é outra, do cidadão do sertão. Política! Tudo política, e potentes chefias. A pena, que aqui já é terra avinda concorde, roncice de paz, e sou homem particular. Mas, adiante, por aí arriba, ainda fazendeiro graúdo se reina mandador ― todos donos de agregados valentes, turmas de cabras do trabuco e na carabina escopetada! Domingos Touro, no Alambiques, Major Urbano na Macaçá, os Silva Salles na Crondeúba, no Vau-Vau dona Próspera Blaziana. Dona Adelaide no Campo-Redondo, Simão Avelino na Barra-da-Vaca, Mozar Vieira no São João do Canastrão, o Coronel Camucim nos Arcanjos, comarca de Rio Pardo; e tantos, tantos. Nisto que na extrema de cada fazenda some e surge um camarada, de sentinela, que sobraça o pau-de-fogo e vigia feito onça que come carcaça. Ei. Mesma coisa no barranco do rio, e se descer esse São Francisco, que aprova, cada lugar é só de um grande senhor, com sua família geral, seus jagunços mil, ordeiros! ver São Francisco da Arrelia, Januária, Carinhanha, Urubú, Pilão Arcado, Chique-Chique e Sento-Sé. 
Demais falasse, tendo conhecido o Neco, se lembrava de quando Neco forçou Januária e Carinhanha, nas éras do ano de 79! tomou todos os portos ― Jatobá, Malhada e Manga ― fez como quis; e pôs séde de suas fortes armas no arraial do Jacaré, que era a terra dele. ― Estive lá, com carta firmada pelo Capitão Severiano Francisco de Magalhães, que era companheiro combinado do Neco. O pessoal que eles numeravam em guerra comprazia uma babilônia. Botavam até barcas, cheias de homens com bacamartes, cruzando para baixo e para cima o rio, de parte a parte. Dia e noite, a gente ouvia gritos e tiros. Cavalaria de jagunços galopando, saindo para distâncias marcadas. Abriam festa de bomba-real e foguetório, quando entravam numa cidade. Mandavam tocar o sino da igreja. Arrombavam a cadeia, soltando os presos, arrancavam o dinheiro em coletoria, e ceiavam em Casa-da-Câmara...
Meu padrinho Selorico Mendes era muito medroso. Contava que em tempos tinha sido valente, se gabava, goga. Queria que eu aprendesse a atirar bem, e manejar porrête e faca. Me deu logo um punhal, me deu uma garrucha e uma granadeira.
Mais tarde, me deu até um facão enterçado, que tinha mandado forjar para próprio, quase do tamanho de espada e em formato de folha de gravatá. ― Sentei em mesa com o Neco, bebi vinho, almocei... Debaixo da chefia dele, paravam uns oitocentos brabos, só obedeciam e rendiam respeito. Meu padrinho, hóspede do Neco; de recontar isso ele sempre se engrandecia. Naquela dita ocasião, todas as pessoas importantes tinham fugido da Januária, desamparadas de poder-de-lei, foram esperar melhor sorte em Pedras-de-Maria-da-Cruz. ― Neco? Ah! Mandou mais que Renovato, ou o Lióbas, estrepoliu mais do que João Brandão e os Filgueiras... E meu padrinho me mostrou um papel, com escrita de Neco ― era recibo de seis ancorotes com pólvora e uma remessa de iodureto ― a assinatura rezava assim: Manoel Tavares de Sá.
Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma decisão: me enviou para o Curralinho, para ter escola e morar em casa de um amigo dele, Nhô Marôto, cujo Gervásio Lé de Ataíde era o verdadeiro nome social. Bom homem. Lá eu não carecia de trabalhar, de forma nenhuma, porque padrinho Selorico Mendes acertava com Nhô Marôto de pagar todo fim de ano o assentamento da tença e impêndio, até de botina e roupa que eu precisasse. Eu comia muito, a despesa não era pequena, e sempre gostei do bom e do melhor. A ser que, alguma vez, Nhô Marôto me pedia um ou outro serviço, usando muito bico de palavreado, me agradando e dizendo que estimava como um favor. Nunca neguei a ele meus pés e mãos, e mesmo não era o nenhum trabalho notável. Vai, acontece, ele me disse: ― Baldo, você carecia mesmo de estudar e tirar carta-de-doutor, porque para cuidar do trivial você jeito não tem. Você não é habilidoso. Isso que ele me disse me impressionou, que de seguida formei em pergunta, ao Mestre Lucas. Ele me olhou, um tempo ― era homem de tão justa regra, e de tão visível correto parecer, que não poupava ninguém! às vezes teve dia de dar em todos os meninos com a palmatória; e mesmo assim nenhum de nós não tinha raiva dele. Assim Mestre Lucas me respondeu! ― E certo. Mas o mais certo de tudo é que um professor de mão-cheia você dava... E, desde o começo do segundo ano, ele me determinou de ajudar no corrido da instrução, eu explicava aos meninos menores as letras e a tabuada.
Curralinho era lugar muito bom, de vida contentada. Com os rapazinhos de minha idade, arranjei companheirice. Passei lá esses anos, não separei saudade nenhuma, nem com o passado não somava. Aí, namorei falso, asnaz, ah essas meninas por nomes de flores. A não ser a Rosauarda ― moça feita, mais velha do que eu, filha de negociante forte, seo Assis Wababa, dono da venda O Primeiro Barateiro da Primavera de São José ― ela era estranja, turca, eles todos turcos, armazém grande, casa grande, seo Assis Wababa de tudo comerciava. Tanto sendo bizarro atencioso, e muito ladino, ele me agradava, dizia que meu padrinho Selorico Mendes era um freguesão, diversas vezes me convidou para almoçar em mesa. O que apreciei ― carne moída com semente de trigo, outros guisados, recheio bom em abobrinha ou em folha de uva, e aquela moda de azedar o quiabo ― supimpas iguarias. Os doces, também. Estimei seo Assis Wababa, a mulher dele, dona Abadia, e até os meninos, irmãozinhos de Rosauarda, mas com tamanha diferença de idade. Só o que me invocava era a linguagem garganteada que falavam uns com uns, a aravia. Assim mesmo afirmo que a Rosa uarda gostou de mim, me ensinou as primeiras bandalheiras, e as completas, que juntos fizemos, no fundo do quintal, num esconso, fiz com muito anseio e deleite. Sempre me dizia uns carinhos turcos, e me chamava de! ― Meus olhos. Mas os dela era que brilhavam exaltados, e extraordinários pretos, duma formosura mesmo singular. Toda a vida gostei demais de estrangeiro.

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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