quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Garbo e Marlene

Greta Garbo me escreveu na semana passada, perguntando se a esqueci. Isto porque todos os anos lhe mando um cartão de Natal, que ela agradece com outro, e assim temos mantido acesa a minúscula mas duradoura chama da nossa perene amizade.
Dezembro último, a Garbo não recebeu a minha mensagem. Esperou-a até maio, supondo que se houvesse extraviado, e que o correio, finalmente, a fizesse chegar às suas mãos.
A verdade é que não faltei a essa grata obrigação, mas, não sei por que, em vez de botar no envelope o nome e endereço da minha amiga, escrevi os de Marlene Dietrich, que jamais conheci na vida, a não ser em filme, e cujo endereço figurava numa revista sobre a mesa.
Marlene devolveu-me o cartão (em que figurava o nome de Garbo) sem qualquer comentário. E eu, encabuladíssimo, não tive ânimo de encaminhá-lo à verdadeira destinatária, transcorridos meses.
Venho meditando sobre a troca, sem chegar a conclusão alguma. Terei pretendido, subconscientemente, ofender Marlene, revelando-lhe minha preferência pela Garbo? Seria de mau gosto. Estaria, no fundo da minha admiração, substituindo uma por outra? Não posso acreditar. Dar-se-á que procurei fundir as duas estrelas num corpo único, juntando naturezas tão diversas? Van Jafa, que já morreu, poderia ajudar-me a destrinçar o enigma.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos plausíveis

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