terça-feira, 10 de setembro de 2019

A equação da vida - 2

Se não podemos explicar a mente, e se não sabemos que função ela desempenha, por que não a descartamos? A história da ciência está repleta de conceitos e teorias abandonados. Por exemplo, os primeiros cientistas modernos que tentaram explicar a movimentação da luz postularam a existência de uma substância chamada éter, que supostamente preenchia o universo inteiro. Pensava-se que a luz fosse feita de ondas de éter. Contudo, os cientistas não conseguiram achar evidências empíricas da existência do éter, ao passo que apresentaram teorias alternativas melhores sobre a luz. Consequentemente, jogaram o éter na lixeira da ciência.
Similarmente, durante 4 mil anos os humanos recorreram a Deus para explicar numerosos fenômenos naturais. O que desencadeia o relâmpago? Deus. O que faz a chuva cair? Deus. Como começou a vida na Terra? Deus fez isso. Nos séculos mais recentes, os cientistas não descobriram nenhuma evidência empírica da existência de Deus, enquanto encontravam explicações muito mais detalhadas para os relâmpagos, a chuva e a origem da vida. Como resultado, com exceção de alguns subcampos da filosofia, nenhum artigo em nenhuma revista científica de análise crítica leva a sério a existência de Deus. Historiadores não alegam que os aliados venceram a Segunda Guerra Mundial porque Deus estava do seu lado; economistas não atribuem a Deus a culpa pela crise econômica de 1929; e geólogos não invocam a vontade divina para explicar os movimentos das placas tectônicas.
A mesma sina sobreveio à alma. Durante milhares de anos, as pessoas acreditaram que todas suas ações e decisões emanavam da alma. Mas, na falta de qualquer evidência que a suportasse, e devido à existência de teorias muito mais detalhadas, as ciências da vida descartaram a alma. Como indivíduos privados, muitos biólogos e médicos podem continuar acreditando nisso. Mas nunca escrevem a esse respeito em publicações científicas sérias.
Talvez a mente devesse se juntar à alma, a Deus e ao éter na lixeira da ciência... Afinal, ninguém jamais viu experiências de dor e de amor por um microscópio, e dispomos de uma explicação bioquímica muito detalhada para a dor e o amor que não deixa margem a experiências subjetivas. No entanto, existe uma diferença crucial entre mente e alma (bem como entre mente e Deus). Enquanto a existência de almas eternas é pura conjectura, a experiência da dor é uma realidade muito direta e tangível. Quando eu piso num prego, posso ter certeza absoluta de que estou sentindo dor (mesmo que até então me falte uma explicação científica para isso). Em contraste, não posso ter certeza de que, se a ferida infeccionar e eu morrer de gangrena, minha alma continuará a existir. Essa é uma história muito interessante e reconfortante na qual eu gostaria de acreditar, mas de cuja veracidade não tenho nenhuma evidência direta. Como todos os cientistas experimentam constantemente sentimentos subjetivos como dor e dúvida, eles não podem negar sua existência.
Outra maneira de descartar a mente e a consciência é negar sua relevância, em vez de negar sua existência. Alguns cientistas — como Daniel Dennet e Stanislas Dehaene — alegam que todas as perguntas relevantes podem ser respondidas estudando as atividades do cérebro, sem nenhum recurso a experiências subjetivas. Assim, cientistas podem apagar com segurança “mente”, “consciência” e “experiências subjetivas” de seus vocabulários e artigos. Entretanto, como veremos nos capítulos seguintes, todo o edifício da política e da ética modernas fundamenta-se em experiências subjetivas, e são poucos os dilemas éticos que podem ser resolvidos com referência estrita a atividades cerebrais. Por exemplo, o que há de errado com a tortura ou o estupro? Do ponto de vista puramente neurológico, quando o humano é torturado ou estuprado, certas reações bioquímicas acontecem no cérebro, e vários sinais elétricos movimentam-se de um agrupamento de neurônios a outro. O que, possivelmente, há de errado nisso? A maioria das pessoas modernas tem aversão ética à tortura e ao estupro por causa das experiências subjetivas envolvidas. Se algum cientista quiser argumentar que experiências subjetivas são irrelevantes, terá o desafio de explicar por que a tortura ou o estupro estão errados sem nenhuma referência a experiências dessa natureza.
Finalmente, alguns cientistas admitem que a consciência é real e efetivamente pode ter grande valor moral e político, mas que isso não desempenha nenhuma função biológica. A consciência é o subproduto biologicamente inútil de certos processos cerebrais. Motores a jato roncam ruidosamente, mas o ruído não impele a aeronave para a frente. Humanos não precisam de dióxido de carbono, contudo toda expiração enche o ar ainda mais com esse composto. Da mesma forma, a consciência pode ser uma espécie de poluição mental produzida pelo disparo de redes neurais complexas. Ela não faz nada. Apenas está lá. Se for verdade, isso implica que toda dor e todo prazer experimentado por bilhões de criaturas durante milhões de anos são apenas poluição mental. Essa é uma ideia na qual vale a pena pensar, mesmo que não seja verdade. Mas é bem surpreendente constatar que, em 2016, trata-se da melhor teoria relativa à consciência que a ciência contemporânea tem a nos oferecer.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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