sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Um Congresso em Madri

A Guerra da Espanha ia de mal a pior mas o espírito de resistência do povo espanhol havia contagiado o mundo inteiro. Já combatiam na Espanha as brigadas de voluntários internacionais. Eu os vi chegar a Madri, em 1936, já uniformizados. Era um grande grupo de gente de diferentes idades, cabelos e cores. Agora estávamos em Paris, em 1937, e o mais importante era preparar um congresso de escritores antifascistas de todas as partes do mundo. Um congresso que seria celebrado em Madri. Foi então que comecei a conhecer Aragon. O que me surpreendeu inicialmente nele foi sua inacreditável capacidade de trabalho e organização. Ditava todas as cartas, corrigia-as, recordava-se delas. Não lhe escapava o mínimo detalhe. Trabalhava horas seguidas no nosso pequeno escritório. E logo, como se sabe, escreve extensos livros em prosa e sua poesia é a mais bela da língua francesa. Eu o vi corrigir provas de traduções que havia feito do russo e do inglês e o vi refazê-las no mesmo papel da gráfica. Trata-se, na verdade, de um homem portentoso e desde aquela época comecei a me dar conta disso.
Tinha perdido o consulado e, portanto, tinha ficado sem um tostão. Comecei a trabalhar, por quatrocentos francos antigos por mês, em uma associação de defesa da cultura dirigida por Aragon. Delia del Carril, minha mulher de então e de tantos anos, sempre teve fama de estancieira rica, mas a verdade é que era mais pobre do que eu. Vivíamos num hotelzinho suspeito, no qual todo o primeiro andar era reservado para casais ocasionais que entravam e saíam. Comemos pouco e mal durante alguns meses. Mas o congresso de escritores antifascistas era uma realidade. De toda parte chegavam valiosas adesões. Uma de Yeats, poeta nacional da Irlanda. Outra de Selma Lagerlof, a grande escritora sueca. Os dois eram idosos demais para viajar para uma cidade assediada e bombardeada como Madri, mas ambos aderiam à defesa da República Espanhola.
Sempre me considerei uma pessoa de pouca importância sobretudo para os assuntos práticos e para as altas missões. Por isso fiquei de boca aberta quando me chegou uma ordem de pagamento da parte do governo espanhol. Era uma grande soma em dinheiro que cobria os gastos gerais do congresso, incluindo as viagens de delegados vindos de outros continentes. Dezenas de escritores começavam a chegar a Paris.
Fiquei desconcertado. Que podia eu fazer com o dinheiro? Optei passar os fundos para a organização que preparava o congresso.
- Eu nem sequer vi o dinheiro que, além disso, seria incapaz de manejá-lo - disse a Rafael Alberti que nesse momento passava por Paris.
- És um grande tolo - respondeu Rafael. - Perdes teu posto de cônsul na Espanha e andas com os sapatos rotos. E não és capaz de destinar a ti mesmo alguns mil francos por teu trabalho e para tuas despesas essenciais!
Olhei para meus sapatos e comprovei que efetivamente estavam rotos. Alberti me deu de presente um par de sapatos novos.
Dentro de algumas horas partiríamos para Madri com todos os delegados. Tanto Délia como Amparo González Tuñón, e mesmo eu, nos encontrávamos angustiados por causa da papelada dos escritores que chegavam de toda parte. O visto francês de saída nos enchia de problemas. Praticamente nos apoderamos do escritório policial de Paris onde se estendiam esses requisitos que eram chamados comicamente “recipisson”. Às vezes nós mesmos aplicávamos nos passaportes esse supremo instrumento francês denominado “tampon”.
Entre noruegueses, italianos, argentinos, chegou do México o poeta Octavio Paz, depois de mil aventuras na viagem. De certo modo me sentia orgulhoso de tê-lo trazido. Tinha publicado um único livro que eu havia recebido fazia dois meses e que me pareceu conter um germe verdadeiro. Ninguém o conhecia então.
Com cara sombria meu velho amigo César Vallejo veio me ver. Estava zangado porque não tinham dado passagem para sua mulher, insuportável para todos os demais. Consegui para ela passagem rapidamente, entregando-a a Vallejo que se foi tão sombrio como tinha chegado. Algo estava acontecendo com ele e esse algo levei alguns meses para descobrir.
O problema era o seguinte: meu compatriota Vicente Huidobro tinha chegado a Paris para assistir ao congresso. Huidobro e eu estávamos estremecidos, não nos falávamos. Em troca ele era muito amigo de Vallejo e aproveitou esses dias em Paris para encher a cabeça de meu ingênuo companheiro de invenções contra mim. Tudo se esclareceu depois numa conversação dramática que tive com Vallejo.
Nunca saiu de Paris um trem tão cheio de escritores como aquele. Pelos corredores nos reconhecíamos ou nos desconhecíamos. Alguns foram dormir; outros fumavam interminavelmente. Para muitos a Espanha era o enigma e a revelação daquela época da História.
Vallejo e Huidobro estavam em alguma parte do trem. André Malraux parou um momento para conversar comigo, com seus tiques faciais e capa nos ombros. Desta vez viajava sozinho. Antes sempre o vi com o aviador Corton-Mogliniere, que foi o executivo central de suas aventuras pelos céus da Espanha: cidades perdidas e descobertas ou na missão vital de trazer aviões para a República.
Recordo que o trem se deteve por longo tempo na fronteira. Parece que Huidobro tinha perdido uma maleta. Como todo mundo estava ocupado ou preocupado pelo atraso, ninguém se achava em condições de dar-lhe atenção. Em má hora chegou o poeta chileno, na procura de sua valise, à gare onde estava Malraux, chefe da expedição. Este, nervoso por natureza e com aquele acúmulo de problemas às costas, tinha chegado ao limite. Talvez não conhecesse Huidobro nem de nome nem de vista. Quando se acercou para reclamar-lhe o desaparecimento de sua maleta, Malraux perdeu o pouco de paciência que lhe restava. Ouvi que lhe gritava: “Até quando você vai incomodar todo mundo? Vá embora! Je vous emerde!”
Presenciei por acaso este incidente que humilhava a vaidade do poeta chileno. Quisera estar a mil quilômetros dali naquele instante. Mas a vida é caprichosa. Eu era a única pessoa a quem Huidobro detestava naquele trem. E me tocava a mim, chileno como ele ainda por cima e não a qualquer outro dos cem escritores que viajavam, ser a testemunha exclusiva daquele acontecimento.
Quando a viagem prosseguiu, já de noite e rodando por terras espanholas, pensei em Huidobro, em sua maleta e no mau pedaço que tinha passado. Disse então a uns jovens escritores de uma república centro-americana que se aproximaram de minha cabina:
- Vão ver também Huidobro, que deve estar só e deprimido.
Voltaram vinte minutos depois com cara alegre. Huidobro lhes tinha dito: “Não me falem da maleta perdida, isso não tem importância. O grave é que enquanto as universidades de Chicago, de Berlim, de Copenhague, de Praga, me outorgaram títulos honoríficos, a pequena universidade do pequeno país de vocês é a única que persiste em me ignorar. Nem sequer me convidaram para pronunciar uma conferência sobre o creacionismo.”
Decididamente meu compatriota e grande poeta não tinha jeito.
Finalmente chegamos a Madri. Enquanto os visitantes recebiam as boas-vindas e alojamiento, eu quis ver de novo minha casa que tinha deixado intacta há cerca de um ano. Meus livros e minhas coisas, tudo tinha ficado nela. Era um apartamento no edifício chamado “Casa de las Flores” na entrada da cidade universitária. Até seus limites chegavam as forças avançadas de Franco. Tanto que o bloco de apartamentos tinha mudado várias vezes de mão.
Miguel Hernández, vestido de miliciano e com seu fuzil, conseguiu uma camioneta para transportar meus livros e os utensílios de minha casa que mais me interessavam.
Subimos ao quinto andar e abrimos com certa emoção a porta do apartamento. A metralha tinha derrubado janelas e pedaços de parede. Os livros haviam despencado das estantes. Era impossível orientar-se entre os escombros. De qualquer maneira procurei algumas coisas atropeladamente. O curioso era que os objetos mais supérfluos e inaproveitáveis tinham desaparecido, levados pelos soldados invasores ou defensores. Enquanto as panelas, a máquina de costura e os pratos se mostravam esparramados em desordem porém sobreviventes, de meu fraque consular, de minhas máscaras da Polinésia e de meus punhais do Oriente não ficou nem o rastro.
- A guerra é tão caprichosa como os sonhos, Miguel.
Miguel encontrou por aí, entre os papéis caídos, alguns originais de meus trabalhos. Aquela desordem era uma porta final que se fechava em minha vida. Disse a Miguel:
- Não quero levar nada.
- Nada? Nem sequer um livro?
- Nem sequer um livro - respondi.
E regressamos com a camioneta vazia.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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