“Temos
dois olhos. Com um, vemos as coisas do tempo, efêmeras, que
desaparecem. Com o outro, vemos as coisas da alma, eternas, que
permanecem”, assim escreveu o místico Ângelus Silésius.
No
consultório do oftalmologista estava uma gravura com o corte
anatômico do olho. Científica. Verdadeira. Naquela noite, o mesmo
oftalmologista foi se encontrar com sua bem-amada. Olhando apaixonado
os seus olhos e esquecido da gravura pendurada na parede do seu
consultório, ele falou: “Teus olhos, mar profundo...”. No
consultório ele jamais falaria assim. Falaria como cientista. Mas os
olhos da sua amada o transformaram em poeta. Cientista, ele fala o
que vê com o primeiro olho. Apaixonado, ele fala o que vê com o
segundo olho. Cada olho vê certo no mundo a que pertence.
O
filósofo Ludwig Wittgenstein criou a expressão “jogos de
linguagem” para descrever o que fazemos ao falar. Jogamos com
palavras... Veja esse jogo de palavras chamado “piada”. O que se
espera de uma piada é que ela provoque o riso. Imagine, entretanto,
que um homem, em meio aos risos dos outros, lhe pergunte: “Mas isso
que você contou aconteceu mesmo?”. Aí você o olha perplexo e
pensa: “Coitado! Ele não sabe que nesse jogo não há verdades. Só
há coisas engraçadas”. Vamos agora para um outro jogo de
palavras, a poesia: “(...) e, no fundo dessa fria luz marinha,
nadam meus olhos, dois baços peixes, à procura de mim mesma”. Aí
o mesmo homem contesta o que o poema diz: “Mas isso não pode ser
verdade. Se a Cecília Meireles estivesse no fundo do mar ela teria
se afogado. E olhos não são peixes...”. Pobre homem... Não sabe
que a poesia não é linguagem para dizer as coisas que existem. É
jogo pra fazer beleza. A ciência também é um jogo de palavras. É
o jogo da verdade, falar o mundo como ele é.
Acontece
que nós, seres humanos, sofremos de uma “anomalia”: não
conseguimos viver no mundo da verdade, do mundo como ele é. O mundo
como ele é é muito pequeno para o nosso amor. Temos nostalgia de
beleza, de alegria e — quem sabe? — de eternidade. Desejamos que
as alegrias não tenham fim! Mas beleza e alegria, onde se encontram
essas “coisas”? Elas não estão soltas no mundo, ao lado das
coisas do mundo tal como ele é. Elas não são, existem não
existindo, como sonhos, e só podem ser vistas com o “segundo
olho”. Quem as vê são os artistas. E se alguém, no uso do
primeiro olho, objeta que elas não existem, os artistas retrucam:
“Não importa. As coisas que não existem são mais bonitas”
(Manoel de Barros). Pois os sonhos, no final das contas, são a
substância de que somos feitos. Como disse Miguel de Unamuno:
Recuerda,
pues, o sueña tú, alma mía
— la
fantasía es tu sustancia eterna —
lo
que no fue;
con
tus figuraciones hazte fuerte,
que
eso es vivir, y lo demás es muerte.
É
no mundo encantado de sonhos que nascem as fantasias religiosas. As
religiões são sonhos da alma humana que só podem ser vistos com o
segundo olho. São poemas. E não se pode perguntar a um poema se ele
aconteceu mesmo... Jesus se movia em meio às coisas que não
existiam e as transformava em parábolas, que são estórias que
nunca aconteceram. E não obstante a sua não-existência, as
parábolas têm o poder de nos fazer ver o que nunca havíamos visto
antes. O que não é, o que nunca existiu, o que é sonho e poesia
tem poder para mudar o mundo. “Que seria de nós sem o socorro do
que não existe?”, perguntava Paul Valéry. Leio os poemas da
Criação. Nada me ensinam sobre o início do universo e o nascimento
do homem. Sobre isso falam os cientistas. Mas eles me fazem sentir
amoravelmente ligado a este mundo maravilhoso em que vivo e que minha
vocação é ser seu jardineiro... Leio a parábola do Filho Pródigo,
uma estória que nunca aconteceu. Mas ao lê-la minhas culpas se
esfumaçam e compreendo que Deus não soma débitos nem créditos...
Dois
olhos, dois mundos, cada um vendo bem no seu próprio mundo...
Aí
vieram os burocratas da religião e expulsaram os poetas como
hereges. Sendo cegos do segundo olho, os burocratas não conseguem
ver o que os poetas veem. E os poemas passaram a ser interpretados
literalmente. E, com isso, o que era belo ficou ridículo. Todo poema
interpretado literalmente é ridículo. Toda religião que pretenda
ter conhecimento científico sobre o mundo é ridícula.
Não
haveria conflitos se o primeiro olho visse bem as coisas do seu
lugar, e o segundo também as visse do seu lugar. Conhecimento e
poesia, assim, de mãos dadas, poderiam ajudar a transformar o mundo.
Rubem
Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é
preciso fogo
Nenhum comentário:
Postar um comentário